Capa do álbum “Rita Lee”, mais conhecido como “Lança perfume”

Desculpem começar com um clichê, mas quem é rei não perde a majestade. Rainha também não perde. Ainda mais Rita Lee, que abdicou da coroa pra assumir o posto de santa. Uma santa desbundada, louca, drogada, tropicalista, elétrica, bossanovista, engraçadíssima, ferina, desbocada, natureba, irônica, que trocou os holofotes da igreja musical pela vida reclusa num sítio cercado de alimentos orgânicos. Mas bastaram 78 segundos para que os fiéis seguidores pedissem seu retorno.

O inabalável casal Roberto de Carvalho e Rita Lee

Sem ter aderido às lives da quarentena e sem fazer show desde 2013, Rita Lee soltou no dia 11 de abril um curto vídeo caseiro cantando ao lado do marido Roberto de Carvalho. A música não poderia ser outra para esses tempos de pandemia: Saúde, que batizou seu disco de 1981. No último dia 7, ela voltou às redes e conversou com o jornalista Guilherme Samora, co-responsável pela autobiografia da roqueira. A live contou ainda com participações de súditos como Ronnie Von, Pedro Bial, Rita Cadillac e Mel Lisboa.

A razão desta aparição – que até colocou Rita para cantar mais uma vez – são os 40 anos do megahit Lança Perfume. A canção que apelidou seu disco de 1980 entrou para o cânone da roqueira que, dali em diante, assumia de vez a veia pop e chegava ao topo do  pódio das estrelas nacionais. Ops, internacionais, já que ela chamou até a atenção do príncipe Charles, que assumiu ser fã da paulistana. Com a presença de mestres dos estúdios brasileiros, gente como Lincoln Olivetti, Guto Graça Mello e Oberdan Magalhães (Banda Black Rio), esse é também o segundo fruto oficial da parceria Rita/Roberto de Carvalho que foi nascendo enquanto ela ainda era da banda Tutti Frutti.

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Se “Lança Perfume” é seu melhor álbum é questionável, mas é certo foi ali em 1980 que Rita confirmou seu posto de diva. E isso teve um preço: à medida que a popularidade foi crescendo, a dose de rock nos discos foi diminuindo. Agora, o único sopro roqueiro do álbum fica guardado para a última faixa, Orra meu, que trouxe a lapidar frase: “juventude transviada para mim é conto de fada”. Ficava o bom humor, a provocação, mas tudo ganhava ar mais comportado. Inclusive na capa, com Rita linda numa foto fosca, com os cabelos escorridos sobre o macacão que depois seria usado por Elis Regina na turnê Trem Azul. Na contracapa, o casal “Lee de Carvalho”, numa pose meio Ginger Rogers e Fred Astaire, se deixava levar num beijo que se confirmou eterno.

O álbum Rita Lee, de 1980, tem apenas oito faixas. A primeira, o arrasa-quarteirão Lança Perfume, tem uma sofisticada introdução de piano que já deixa claro que as intensões musicais agora são outras. A faixa segue com melodia que tira ideias de What a Fool Believes (Doobie Brothers) e uma letra super provocativa falando de alucinógenos e sexo de uma forma nada figurativa. E a paixão idílica do casal segue presente em faixas como Baila comigo (“Viver pelado, pintado de verde”), Caso sério (“Misto quente, sanduíche de gente”) e na sussurrada Shangrilá. Essa última nasceu no início dos 1970, depois da saída dos Mutantes, quando ela montou uma dupla com Lucinha Turnbull chamada Cilibrinas no Éden. Antes chamada Bad Trip, a faixa original repetia o início de Shangrilá antes de entrar numa viagem lisérgica de violões, guitarras e teremim. Da letra original, foi trocada a parte em que ela fala que teve “vontade de dar um tiro na cabeça” por uma escapulida romântica para o topo do Himalaia. Ainda tem a divertida Bem-me-quer e a preocupada Nem Luxo, Nem Lixo.

Por fim, João Ninguém era uma “homenagem” ao então presidente do Brasil. “O general Figueiredo, ditador do ‘prendo e arrebento’, foi o muso inspirador do meu ego pra escrever a letra de João Ninguém, um cara pé de chinelo que saiu do estábulo e virou rei, mas o cheiro de estábulo nunca saiu dele, aliás, uma carapuça que cabe perfeitamente em nossos políticos de hoje”, entrega Rita em sua autobiografia.

Com tantos sucessos, o álbum “Lança Perfume” trouxe a Rita o reconhecimento comercial merecido, conquistou as pistas de dança da Europa e rendeu uma turnê cheia de efeitos tecnológicos. Em Fortaleza, o show aconteceu no Ginásio Paulo Sarasate e estava bastante lotado. “O palco era todo branco, parecendo uma passarela de desfile. O que me chamou a atenção é que (antes do show) não tinha nada em cima do palco. A gente só via a bateria e o teclado, mas estavam disfarçados por uma luz. Quando eles entraram, já era com os instrumentos sem fio, que era uma tecnologia nova”, lembra o músico Mimi Rocha que estava na plateia. “Uma coisa que foi massa é que ela tocava flauta em algumas músicas e, numa delas, ela fez um truque de mágica. A flauta vira tipo umas purpurinas. O show era todo temático, os músicos com umas roupas bem claras por que tinha uma projeção em cima. Foi uma coisa inovadora na época”, completa.

Assim como Paul McCartney quis se afastar do repertório dos Beatles após o fim da banda, Rita também quis sair da sombra das suas ex-bandas. Roberto foi o remédio que a encaminhou para uma carreira estável e vitoriosa, que se refletia numa família que também crescia. Para uns, o guitarrista enterrou a roqueira embaixo de uma montanha de produções chiques. Mas o gênio indomável de Rita não deixou de dar as ordens e ela voltou ao rock, fez marcha de carnaval, cantou bossa nova, regravou de Ramones a Billie Holliday, e foi ampliando os próprios horizontes musicais até além de onde a vista alcança. Sempre ao lado, Roberto de Carvalho foi lustrando tudo, aparando arestas, polindo aqui e acolá, e deixando tudo pronto para conquistar o público. Os roqueiros mais xiitas criticam, mas difícil é resistir ao balanço de Lança Perfume.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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