Foto: Leo Aversa/ Divulgação

Um olhar atento na ficha técnica do novo disco de Roberto Frejat e é possível reconhecer que ele já não quer mais caber em nenhum rótulo. Ao redor do precipício tem parceria com Luiz Melodia e Jards Macalé, um solo de Alice Caymmi, vocais do Ritchie, arranjos de Arthur Verocai, flautas de Carlos Malta, bateria de Pupillo e uma constelação de músicos da qualidade de Zé Bigorna, Rick Ferreira e Marcelinho da Costa. Lançado 12 anos depois de Intimidade entre Estranhos, esse quarto álbum de inéditas é o retrato deste carioca de 58 anos que, embora tenha sido revelado no meio de uma geração identificada com o rock, nunca quis se resumir aos clichês do gênero.

Frejat, assim como seu parceiro mais famoso, o saudoso Cazuza, sabia como poucos o que tinha de rock na MPB e de MPB no rock. E é nesse cruzamento que eles construíram um repertório de clássicos nacionais. Ao redor do precipício ainda não tem seus clássicos, mas carrega o mesmo DNA. A produção coube a Frejat junto de Alexandre Kassin, Humberto Barros e Mauricio Negão, trio que não se conhecia até essa oportunidade. “A gente chegou a mostrar o disco em algumas gravadoras, mas o que teria de apelativo (comercialmente) para elas é muito distante do que eu quero fazer. Um amigo até disse: ‘você não fez um disso pro mercado, você fez por que é um artista’. De fato, em nenhum momento eu pensei em ter um hit. Aliás, eu nunca e preocupei com isso. Eu não me preocupei se teria uma música no tamanho pra tocar no rádio. Tem a ver com maturidade, mas tem a ver com o desprendimento de caber em algum lugar”, avalia Frejat, por telefone.

Embora já tivesse desistido do formato físico, Frejat, que vinha lançando singles espaçados, ouviu amigos e decidiu reunir a nova produção em CD e streaming. “Os amigos perguntavam pelo novo CD e eu perguntava ‘vc vai comprar onde?’. Mas eu entendi que o disco funciona mais como um registro cronológico, pelo fato das pessoas saberem onde está sua cabeça naquele momento. De repente é uma hora pra cima, outra pra baixo, um baladão, um rock. Em cada álbum isso fica impregnado. Eu comecei a perceber que o disco tinha esse papel”, explica o artista que começou os trabalhos por Planetas distantes.

Foi a partir dessa parceria com Dulce Quental que, o que poderia ser mais um single, virou Ao redor do precipício. A propósito, a faixa que dá nome ao disco é uma das três vinhetas instrumentais que cortam o disco, mais um recurso inédito na obra do ex-líder do Barão Vermelho. O que vem a seguir é uma série de referências e aprendizados acumulados em quase 40 anos de carreira. Como Te Amei Ali, uma balada soul, com ares de Tim Maia e vocais feitos pelo quarteto que acompanha a cantora Iza – Érica Anjos, Leticia Pedroza, Murilo Santos e Junior Tavares são seus nomes. Já Pergunta urgente encosta em George Harrison, tanto nas intenções mântricas como na mensagem reflexiva (“Nada me convenceria a correr, só que eu bem precisava ser mais de um pro que eu quero viver”). Costurada pelo pedal steel de Rick Ferreira, a faixa é uma composição de Nenung, músico gaúcho, budista e membro da banda The Darma Lovers.

Nas 13 faixas de Ao redor do precipício, é possível encontrar um pouco de tudo que fez Frejat ser um dos artistas mais populares do Brasil. Tudo que eu consegui é um verso de Antônio Cícero que Mauro Sta. Cecília transformou em letra de música e ganhou um arranjo dançante de disco music. Cartas e versos é uma das quatro parcerias com Leoni, assim como Amar um pouco mais. “Isso é fruto de uma trilha sonora do filme Intimidade entre estranhos. Essas músicas são muito boas pra ficarem no armário. Ele (Leoni) já tinha feito a versão dele, o filme saiu e eu vi que algumas músicas estava muito boas. Bicho, eu vou gravar essa porra toda”, constatou o músico que tirou também dessa parceria o ponto  alto do novo disco, a faixa Por mais que eu saiba. Combinando o doce da letra, com a voz forte e o arranjo grandiloquente, essa balada é a prova maior da maturidade de Frejat. “É um xodozinho meu. É um momento que não chega a ser Frank Sinatra, mas tem essa abordagem de ser acompanhada por uma orquestra, não por uma banda. É minha música Pet Sounds”, explica citando o clássico dos Beach Boys.

Outros dois elementos de Ao redor do precipício merecem destaque. O primeiro é Alice Caymmi encarnando uma dominatrix em A sua dor é minha. Frejat coloca voz em algumas frases e arranha sua guitarra, mas é ela quem toma conta de versos como “Você me toca porque eu quero, você só me beija porque eu deixo antes”. A música já estava pronta e Frejat propôs de convidar uma mulher pra colocar a voz, e que fosse alguém da nova geração. “Ela (Alice) demorou a responder e achei que ela não tinha gostado. Mas ela respondeu, veio, cantou brilhantemente e foi embora consagrada”, brinca ele. A comunhão dos dois também foi celebrada por que Alice gravou em seu disco mais recente (Electra, 2019) uma composição de Maysa, Diplomacia, que fazia parte do repertório dos primeiros anos do Barão.

O outro elemento são as presenças de Luiz Melodia e Jards Macalé, parceiros de Frejat em E você diz. A faixa foi composta em torno de 2015 e reafirma a admiração do roqueiro por esses dois velhos malditos, ainda mais falando sobre um tema tão atual: afirmações convenientes, embora inverídicas, ou “fakenews”, pra ser mais claro. A voz de Macalé dá ainda mais peso a esse baião roqueiro de arranjo climático. E Frejat completa a mensagem falando sobre o Brasil de hoje. “Ontem batemos mais um record de mortes, e o governo falando em sair desse isolamento. Acho que o Estado tinha que ter entrado muito forte pra garantir esse isolamento, as pessoas não podem ficar preocupadas com o que tem pra comer”, afirma entre críticas à política federal “absolutamente patética”.

A indignação remete a 1985, quando o país aspirava um novo momento, com o fim da ditadura militar. No palco do Rock In Rio, Cazuza encerrava o show do Barão desejando “que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã, com um Brasil novo e uma rapaziada esperta”. O show foi em 15 de janeiro, dia que Tancredo Neves foi escolhido como o novo presidente da república. “A gente acreditava nisso. É muito triste a gente chegar agora a esse estado das coisas. A gente tem um país com recursos muito fortes, capacidade de ser uma economia forte. Mas a gente esqueceu da coisa mais importante que é a educação. Em nenhum dos governos houve educação de qualidade. O mundo está caminhando para um ponto em que a qualificação vai ser definidor entre você estar dentro ou fora da economia. E eu não quero dizer que a economia é mais importante, mas é o que faz o mundo girar. Não é uma questão de ver a economia em primeiro lugar, mas dela estar numa perspectiva humanista. Acho que a gente está totalmente no caminho errado. Acho triste por que a gente já teve várias oportunidades de estar num caminho melhor, mas a cena política deturpou isso”.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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