Bibi Ferreira no espetáculo em homenagem a Edith Piaf

Bibi Ferreira tinha cerca de 1 metro e meio. Elis Regina, Claudette Soares também partilhavam dessa estatura. Também partilhavam de um feito mágico: quando pisavam no palco, esse tamanho se multiplicava 5, 10, 20 vezes. “Ela tinha uma coisa única: ela nunca soube o que era ser coadjuvante”, afirma Nilson Raman, produtor paulista que trabalhou com Bibi nos últimos 30 anos. Além de dividirem planilhas com datas, eles também atuavam juntos em cena e foram grandes amigos.

Com essa proximidade, a grande estrela do teatro brasileiro abriu para Raman seu rico acervo de fotos, figurinos, recortes de jornal, documentos que constroem 96 anos de vida, praticamente, todos dedicados à arte. Muito desse arquivo agora está disponível para o público com o projeto multimídia Bibi Ferreira – Uma vida no palco. Contando desde a estreia, com cerca de 20 dias de nascida (quando substituiu uma boneca que havia sumido dos bastidores da peça Manhãs de sol, de Oduvaldo Vianna) até os últimos dias de vida, quando ainda ensaiava – no hospital, inclusive – um espetáculo que homenagearia Dorival Caymmi (ela foi substituída por Danilo Caymmi), a vida de Abigail Izquierdo Ferreira é reconstrói uma estrada feita muito trabalho, muita dedicação e disciplina.

A primeira edição do projeto foi lançada em 2003, ainda por conta dos 60 anos de carreira de Bibi, mas não foi comercializada. Essa segunda edição atualiza as informações – incluindo a morte da atriz em 13 de fevereiro de 2019 – e está disponível em livro (apenas 800 exemplares) e num site gratuito. “Bibi tem um acervo maravilhoso. Tem até a roupa dela que saiu da maternidade, são oito mil fotos. Nós começamos a fazer o livro em 2001. A gente já estava com o show e resolveu fazer o livro pelos 60 anos de carreira dela. Desde então, sempre ia atualizando o acervo e ela continuava se apresentando gravando, aumentando o público. Em 2014, quando fomos fazer a Piaf em Nova York, eu sacava que as pessoas admiravam, mas não tinham uma dimensão de quem era ela internacionalmente”, explica Raman que começou com um documento dirigido para formadores de opinião.

A história do “Raman da Bibi”, como uma vez chamou Maria Bethânia, tem dois começos. O primeiro foi em meados dos anos 1980, quando ele, sobrinho da jornalista Dulce Damasceno de Brito, amiga de Bibi responsável por apresenta-la a Carmen Miranda, levou o sobrinho para ver inúmeras vezes o espetáculo Piaf, a vida de uma estrela da canção no Teatro Cultura Artística. Na década seguinte, já morando no Rio de Janeiro, ele a reencontra por intermédio de Tina, filha de Bibi, com a intenção de celebrar os 50 anos de carreira da atriz. “Antes de falar qualquer coisa, ela disse: ‘meu filho, tudo menos a mentira. Outra coisa, não suporto surpresa’. Depois veio o ‘boa tarde’”, lembra ele sobre a primeira reunião de trabalho. “E isso norteou nossa vida inteira”.

Daí em diante, Nilson passa a dedicar muito do seu tempo a gerenciar a carreira de Bibi Ferreira. Mesmo com outros projetos, ela ocupava um lugar especial. Ocupa ainda, uma vez que ele planeja para 2022 o livro Por trás da estrela, a biografia da amizade entre eles dois. Nilson, que estudou teatro e dança, chegou a participar de novelas da Globo, mas sem nunca perder o olhar no business, teve um papel especial quando decidiu remontar o espetáculo sobre Edith Piaf. A peça precisava de um narrador que eventualmente atuava e cantava em cena. Ele se ofereceu para o papel, mas viu uma dificuldade: não falava francês. “Isso é o de menos, meu filho. Decora como se fala”, sugeriu Bibi. A mesma praticidade ele lembra de quando ela foi fazer um teste com Adriane Galisteu para um papel na peça “Deus lhe pague”. Adriane chegou, Bibi pediu que ela andasse de um lado ao outro do palco. “Pronto, está ótimo”. Mas como, Bibi? “Ela sabe andar num palco”. Era o suficiente.

Muitas dessas histórias estão em Bibi Ferreira – Uma vida no palco, assim como uma infinidade de outras. A família, os estudos no teatro e no ballet, sua primeira companhia de teatro (em 1944), a experiência como apresentadora de TV (onde recebia nomes como Luiz Gonzaga, Vicente Celestino e Aracy de Almeida), a fama em Portugal, os shows que dirigiu de Maria Bethânia e Clara Nunes, a consagração em Nova York e a reverência de Liza Minnelli ao ver Bibi cantando o repertório imortalizado por Frank Sinatra. Também estão no livro os muitos prêmios e personagens a que deu vida: madame Bovary, a Joana de Gota d’água, Amália Rodrigues (a própria diva do fado disse que queria que Bibi interpretasse sua história depois de vê-la como Piaf), Carlos de O noviço (o papel mais difícil, segundo ela própria) e Elisa de Minha querida, Lady. “Bibi dizia que quando estava no palco, ela não seria interrompida. Era um encontro dela com deus. Minha referência será sempre Bibi Ferreira. Eu trabalhei com ela 28 anos, eu não vou fazer isso com mais ninguém”, encerra Nilson Raman.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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