Miles Davis e seu inseparável companheiro, o instrumento

Definir um estilo musical e ser fiel a ele durante a carreira é um grande desafio enfrentado por artistas, principalmente aqueles que estão começando agora. Diante de tantas opções e subgêneros a disposição, a fidelidade de um purista se vê comprometida com tantas distrações.

Peguemos o samba, por exemplo, e suas vertentes mais conhecidas: samba duro, de breque, partido alto, pagode, samba enredo, samba de roda, samba canção, samba rock (diga se de passagem, que nem é um nem outro…), sambalanço, sambossa, samba reggae, samba jazz, samba funk, playgode, sambanejo, etc… Aí que você já vê a encrenca em que se meteu.

Mesmo em estilos calcados na variedade e improvisação, como o jazz, e suas várias encarnações, músicos consagrados enfrentam crítica de radicais de que teriam se vendido aos modismos, viraram comerciais e perderam a essência.

Miles Davis, o grande gênio maldito, começou a carreira nos anos 1940, substituindo o também trompetista Dizzy Gillespie (aquele da bochecha cheia quando tocava) na famosa banda do saxofonista Charlie Parker, que fazia muito sucesso principalmente entre os outros músicos com o jazz bebop, um estilo definido por trocas rápidas de acordes, modulações constantes (mudanças de tom), temas curtos e com andamentos (velocidade) acelerados. Ou seja, era música pra virtuosos e até hoje é ensinado em escolas de música mundo afora atraindo ainda músicos jovens querendo mostrar “ligeireza”.

São temas clássicos do estilo: Donna Lee (que Miles jura que é dele, mas sai como sendo de Charlie Parker), Ko-ko, Antrophology, Cherokee, A Night In Tunisia, Groovin High, entre outras.

Miles cansou rapidamente de tocar somente pra outros músicos, se juntou ao maestro Gil Evans e criaram juntos o cool jazz, com o histórico The Birth of the Cool, gravado entre 1949 e 1950 mas só lançado em 1957 quando ele já estava em outra onda. O foco aqui eram músicas mais orquestrais, influências eruditas. Seu grupo era um noneto que incluíam tuba e french horn, que não eram instrumentos usuais em jazz. Os arranjos eram mais texturais e menos ênfase na improvisação. Os temas tinham andamentos de lentos a médio e eram bem curtos. Um programa da TV americana mostra o famoso grupo em ação na época.

Quando todo mundo embarcou na onda “cool”, que influenciou até a o nossa Bossa Nova (vai virar coluna…) o camaleão Miles já estava inovando dessa feita com o hard bop, um estilo mais vigoroso que tinha influências do bebop, do blues e usava standards (temas e canções populares ) como base para os arranjos e improvisações. O novo estilo se cristalizou quando ele assinou com o selo Prestige, na metade dos anos 1950, e montou seu primeiro quinteto que trazia o jovem saxofonista John Coltrane, que faria fama mais adiante.

Com esse excepcional grupo, ele lançou quatros obras primas em conceito, musicalidade e até na arte das capas: Relaxin, Cookin, Steamin e Workin. Miles estava numa das suas melhores fases como instrumentista. É difícil selecionar as melhores mas destaco: Airegin, Tune-Up, Four, When I fall in loveIt could happen to you.

A sorte dele mudou com a apresentação no lendário Newport Jazz Festival (ele reclamou por anos que nunca recebeu o cachê…) em julho de 1955 que o levou a assinar com a Columbia Records e passar a ter status quase de um Sinatra, com todos os mimos e recursos que uma grande gravadora poderia lhe dar. Com isso também vieram os excessos (drogas, romance complexos, acidentes…), mas o legado musical é inquestionável nesse que foi seu mais longevo contrato.

Com ajuda do sensacional produtor Teo Macero, estúdios de ponta e fama também entre os músicos que agora até pagavam pra fazer parte de sua banda, Miles lançou discos seminais começando por Round Midnight e seguindo com os clássicos Milestones (que prenuncia a sua próxima fase), Someday My Prince Will come, a trilogia mais orquestral com o velho amigo Gil Evans (Miles Ahead, Porgy & Bess e Sketches of Spain), e vários shows mundo afora que hoje são relançados em edições especiais. O som do seu trompete agora era mais suave (usava uma surdina, espécie de abafador que se tornou a sua trademark) e contido.

Em 1959, Miles chama de volta Coltrane, recuperado das drogas, o pianista branco Bill Evans com influências de Debussy, e grava o disco de jazz mais vendido e famoso de todos os tempos, Kind Of Blue.

O disco foi gravado em apenas duas sessões curtas, sem nenhum ensaio ou preparação anterior, numa igreja antiga transformada num estúdio em Nova Iorque. Era o início da nova fase dele, o modal jazz.

Na música modal você trabalha os modos (escalas) ao invés de tonalidades, e Miles abusou do minimalismo (nem existia na época, rss…) em temas enxutos porém marcantes. O pianista Bill Evans foi parceiro em duas músicas So What e Blue in Green, mas nunca recebeu o crédito.

O disco é todo excepcional e a banda é um espetáculo à parte (John Coltrane – sax tenor; Cannonball Aderley – sax alto; Paul Chambers – baixo; Jimmy Cobb – bateria). Além de Miles e Bill, o pianista bluesy Winton Kelly toca na faixa Freddie The Freeloader. Completam o disco as clássicas All Blues e Flamenco Sketches. Cada faixa tem sua mágica e o disco nunca foi reproduzido na íntegra ao vivo na época do lançamento (Coltrane saiu da banda para carreira solo), era impossível melhorá-lo…

A moda da Bossa Nova nos EUA, nos anos 1960, fez com que a gravadora forçasse Miles a embarcar, mas ele, mesmo gostando do estilo, se recusou. Entretanto, mesmo assim, foi lançado contra a sua vontade o irregular Quiet Nights, onde ele faz versões quase evitáveis de Corcovado e Aos pés da cruz.

Miles segue conquistando a Europa em shows e discos memoráveis com grupos que variam bastante os músicos (alguns já famosos em carreira solo e outros, por Miles ser ruim de pagar, evitam tocar com ele). Destaco os obrigatórios discos Four and More, My Funny Valentine (ambos gravados no mesmo dia em dois sets) e Miles Davis in Europe.

Saindo de uma fase de drogas, brigas conjugais e contratuais, Davis monta um novo quinteto, que seria o seu mais duradouro e famoso, com jovens músicos de formações e influências distintas. Todos virtuosos em seus instrumentos.

O mais experiente era Wayne Shorter, grande compositor e saxofonista (que depois fez fortuna com a banda fusion Weather Report). Completavam o time Herbie Hancock (piano), Ron Carter (baixo) e  o baterista de 16 anos Tony Williams.

Com eles, Miles criou um estilo que ficou sem nome, mas que fez história. Com algumas exceções a música é complexa difícil de ouvir, com influência de compositores de vanguarda eruditos, as improvisações (solos) em sua maioria não seguem o padrão tradicional do jazz (tema ou forma da canção AABA), são mais abstratas, livres e a interação entre os músicos é quase telepática, mas requerem uma audição mais cuidadosa e repetida para melhor compreensão.

Ainda assim alguns temas viraram standards e são tocados até hoje por músicos do mundo todo. Destaco Footprints, E.S.P., Pinocchio, Fall, Nefertiti (essa no estilo Bolero de Ravel, onde uma única melodia é repetida várias vezes com mudanças de intensidade e nuances).

No final dos anos 1970, o Jazz tinha sido varrido das rádios e clubes americanos pelo sucesso avassalador da música pop (leia-se Motown) e pela invasão do rock britânico (Beatles, Stones…). Na Califórnia, o movimento “flower power” dos hippies e os negros com a black music (James Brown, Aretha Franklin, Stevie Wonder…), Miles, que vinha de turnês na Europa e nos EUA, já era coisa de “velho”…

Era hora de nova mudança! Fazer músicos jovens de jazz, ouvir Jimmi Hendrix, Sly and The Family Stone, eletrificar os instrumentos foi a saída e assim surgiu o jazz rock fusion.

Em discos seminais e de muito sucesso entre universitários, hipongas e com nariz torcido de antigos fãs, críticos de jazz ele lança dois petardos: In a Silent Way e Bitches Brew. Traz alguns músicos da Inglaterra pra banda (destaco o guitarrista John Mclaughlin, que faria fama em seguida com a Mahavishnu Orchestra), o pianista e compositor Joe Zawinul (austríaco que seria parceiro de Wayne no grupo fusion Weather Report), além de vários músicos novos e talentosos, como os pianistas Keith Jarrett e Chick Corea (recém falecido), que também fizeram fama após essa passagem pela banda de Miles.

Esses discos se caracterizam por longas jam sessions (temas improvisados na hora) que foram depois editadas (as melhores partes) pelo produtor Teo Macero. São bastante texturais e com grooves repetitivos e hipnóticos, por não terem uma melodia ou tema bem definido exigem também audição atenta.

O estilo fusion depois virou um pastiche de temas pop tocados por músicos virtuosos e com subgêneros, como o smooth jazz, que tem várias rádios nos EUA especializadas.

Miles ainda lançou alguns discos clássicos no estilo até 1974 (On The  Corner, Jack Johnson, AghartaPangea), além de muita coisa ao vivo  – como o Live Evil, que traz na banda o percussionista brasileiro Airto Moreira. Airto apresentou Hermeto Pascoal a Miles, que se impressionou com a facilidade do albino em compor e incluiu duas músicas dele nesse disco (Litle ChurchNem um talvez). Como era sua característica, Davis não deu o crédito. Hermeto até hoje diz que daria mais músicas sem problema.

Em meados dos anos 1970, Miles teve um longo período sabático (problemas com saúde, drogas e mulheres) só voltando à ativa no começo dos anos 1980 com um flerte com a música pop. Gravou músicas de Michael Jackson e Cindy Lauper, teve influências declaradas de Prince e até da banda de rock Journey.

Lançou uma nova geração de músicos. Caso do genial multi-instrumentista Marcus Miller, que produziu seu melhor disco dessa fase final, o sensacional Tutu (dedicado ao bispo Desmond Tutu). E ainda dos guitarristas Mike Stern e John Scofield, que hoje são grandes nomes do jazz contemporâneo com carreiras solo consolidadas.

Sempre incansável na sua procura por algo novo, Miles, de uma certa forma, previu o sucesso que a música negra dos guetos – o Hip-Hop e o Rap – fariam no futuro e seriam o novo mainstream quando lançou, em 1992, seu último disco Doo-Bop, com o músico e Dj Easy Mo Bee .

Após sua morte, foi lançado, em 1993, o álbum e vídeo do show póstumo Miles & Quincy: Live At Montreux, que agradou de novo os puristas (era o Miles que eles gostavam) por ter releituras de músicas de álbuns clássicos dele com Gil Evans, com arranjos e execução da incrível orquestra de Quincy Jones. Miles já estava bem debilitado e teve ajuda do jovem trompetista Wallace Roney em muitas músicas. O resultado pode ser considerado satisfatório se pensarmos como uma merecida homenagem ao seu legado.

Antes de morrer perguntado se tinha saudade da era do ouro do jazz, desdenhou: “Você chama de era de ouro músicos negros drogados tocando por uma esmola em clubes de brancos ricos que não entendem nem prestam atenção na música ???”

No rock temos um camaleão chamado David Bowie, mas aí é assunto pra uma próxima coluna.

Boa audição.

Mimi Rocha é músico e produtor. Ele escreve nesse espaço quinzenalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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