Foto: Gabriel Nascimento/ Divulgação

A primeira vez que ouvi falar no nome de Vera do Canto e Mello foi no disco Pierrot do Brasil, de Marina Lima, lançado em 1998. Ela está creditada como participação especial fazendo um vocal grave e sóbrio na faixa Pra ver meu bem corar. Ao saber que esta cantora, atriz, professora e preparadora vocal carioca, de 83 anos, estaria no The Voice+, já pensei numa entrevista e em perguntar sobre essa parceria com uma cantora pop. Qual não foi minha surpresa por ela não lembrar dessa gravação.

Vera foi professora de canto de Marina, assim como de uma infinidade de artistas, entre cantores e atores. Leo Jaime, Miguel Falabella, Paula Toller, Marisa Monte e Claudia Raia também estão entre seus alunos. Ainda bem jovem, seus estudos na música começaram pelo piano, quando também começou a praticar o ballet. Daí ela não parou de estudar, conquistar espaços, ganhar prêmios e buscar novos caminhos na música. Morou em Viena, onde praticou o canto erudito. Na volta, chefiou o departamento de Música da Escola Americana do Rio de Janeiro, cantou na reabertura do Theatro Municipal e participou da peça Evita, um marco do teatro musical brasileiro que teve no seu elenco a cantora Claudya, que também participa da nova temporada do The Voice + (ambas são do time de Claudia Leitte).

A seguir, Vera do Canto e Mello fala da sua estrada na músicas e das suas expectativas para uma vida pós-pandemia.

DISCOGRAFIA – Como você avalia sua participação no The Voice+?
Vera do Canto e Mello – Fiquei muito satisfeita com as apresentações que fiz até agora. Mas acho importante ressaltar que não fiz nada sozinha. Tive Torcuato na retaguarda (Torcuato Mariano, produtor musical do The Voice+). Foi tudo muito planejado, então, quando é assim, desde a própria escolha da música, já me sinto segura. Quando a pessoa se apresenta num palco, fica à mostra, então é preciso ter tudo bem planejado. E, claro, tem que ter coragem.

DISCOGRAFIA – Queria saber como nasceu seu interesse pela música. Lembra da primeira música ou o primeiro artista que te chamou atenção?
Vera do Canto e Mello – A música entrou na minha vida quando eu ainda era criança. Aos 16, comecei a estudar canto e o repertório era todo lírico. Mas eu tinha minhas preferências. Eu adorava músicas americanas, gostava de ver Judy Garland cantando nos musicais, Ella Fitzgerald, entre tantas outras vozes. No Brasil, sempre gostei de Samba Canção, essas músicas mais para o emocional, quase um lírico, como as que Tom Jobim cantava.

DISCOGRAFIA – Você participa de uma música do disco Pierrot do Brasil, da Marina. Queria saber a história dessa música, desse encontro e como foi essa gravação.
Vera do Canto e Mello – Não me recordo de ter participado de nenhuma gravação de disco com Marina, mas ela foi, sim, minha aluna por muitos anos. Ajustei a minha técnica à voz dela porque Marina tem uma voz um pouco difícil de trabalhar. Não é uma voz flexível, extensa. Nós escolhíamos um repertório que se adequasse bem a ela. Foi um período de muito trabalho, muito delicado e cuidadoso, para que ela pudesse ter prazer nas escolhas. Foi um trabalho cuidadoso e bonito porque ela ficou feliz com os resultados.

DISCOGRAFIA – Você tem uma longa carreira como professora de música, além de ter cantado ópera e musicais. Mas não encontrei registros de discos seus. Por que não investiu numa carreira discográfica?
Vera do Canto e Mello – Não sei dizer. Sempre me vi produzindo música, mas nunca vendendo minha voz em discos. Talvez eu não tivesse a paciência necessária para entrar no estúdio, escolher repertório. O meu foco sempre foi nas aulas, nos meus alunos e nas eventuais apresentações que surgiam através de contatos com Clodovil, Jô Soares, Claudia Raia. Minha vida sempre foi muito variada em termos de atividades musicais. Cantei em musicais, em ópera, mas realmente nunca pensei em gravar um disco.

DISCOGRAFIA – A nova temporada do The Voice é voltada para cantores com mais de 60 anos e algumas participações chamaram atenção pela beleza do show. Qual é o espaço que existe na música brasileira para artistas mais velhos num país que tanto cultua o corpo e a juventude?
Vera do Canto e Mello – Comercialmente falando, de fato não há espaço para pessoas de mais idade. A mocidade comanda a música popular, o povo é o jovem. É difícil você ver uma pessoa com mais de 50 anos lançando algo. O The Voice+ é um bom exemplo de iniciativa sobre como abrir esse espaço. A música brasileira é muito rica, reconhecida pelo mundo inteiro por sua qualidade. É preciso aproveitar isso.

DISCOGRAFIA – Muito chamou minha atenção a forma como você cantou My favorite things, de olhos fechados, com movimentos leves e incrível suavidade. Além da voz, o que é fundamental para uma boa interpretação?
Vera do Canto e Mello – Sensibilidade para enxergar qual é o caminho da música.

DISCOGRAFIA – Sendo professora de canto, que lições são fundamentais para quem deseja ser um cantor profissional?
Vera do Canto e Mello – Ah, tem tanta coisa importante. Em primeiro lugar, a saúde vocal. Isso inclui não gritar, beber bastante água, trabalhar respiração, o apoio, entender como funciona a respiração porque ela é a base de tudo. Se não tem já uma voz naturalmente colocada, procurar um profissional para ajudar a colocar a voz, para não forçar. Nunca forçar, isso é fundamental. Ter uma série de exercícios para aquecer antes de cantar, coisa de 5 a 10 minutos. Colocar a voz no lugar para você poder interpretar. Tem que ter uma independência vocal. A voz tem que ter independência para que haja uma boa interpretação, para que haja um casamento das duas coisas. Não falar demais, porque quando falamos não pensamos em como estamos usando a voz.

DISCOGRAFIA – Quando se fala das grandes estrelas da MPB, quase todas iniciaram a carreira sem o conhecimento formal de música. Foi com talento e intuição que nossa música popular se formou. O que isso diz sobre nossa música e qual a importância do trabalho técnico para quem segue carreira na música?
Vera do Canto e Mello – É preciso estudar. Aconteceu de nós termos tido cantores maravilhosos que abriram as portas para nossa música. Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira. Hoje em dia ninguém canta mais assim. É preciso estudar canto. Ler sobre técnica vocal. E não parar. Agora mesmo, estou fazendo um pouco de aulas com a Nina, fonoaudióloga, enquanto espero para ir para o palco. A voz vai para o lugar. E tem a parte respiratória. É fundamental, a base de tudo. Feito um edifício que você vai construir. Se não tiver bons fundamentos, ele pode ruir. O corpo precisa ser conhecido pelo cantor.

DISCOGRAFIA – Que cuidados você toma diariamente para manter a voz saudável?
Vera do Canto e Mello – Bebo muita água, não grito e se eu grito, grito colocado, como se estivesse cantando (risos). Não desgasto minha voz falando demais, faço exercícios de respiração. Só evito exercitar muito porque fico com receio de colocar muita técnica e perder o popular. Então, faço o que acho mais necessário para proteger e interpretar, para que fique natural.

DISCOGRAFIA – Mesmo com uma carreira tão longa e bonita, tem algum sonho que você ainda não tenha realizado como cantora?
Vera do Canto e Mello – Não. Estou realizando o último, estando no The Voice+. Eu já tinha encerrado minha carreira. Não segui nenhuma linha que exigisse de mim minha concentração total, objetivando o resto da minha vida naquela linha. Quando era mais moça, queria ser cantora de ópera. Mas as coisas foram tomando outro caminho. Cantei uma ópera, cantei musical e depois comecei a dar aulas de canto. E eu adoro dar aulas de canto. Eu tenho certeza que não existem dois aparelhos vocais iguais no mundo. Então, cada voz que chega para mim é uma novidade.

DISCOGRAFIA – Queria que você me apontasse as três vozes que você mais admira e o que admira nelas.
Vera do Canto e Mello – Não consigo apontar apenas três vozes, mas posso falar sobre o que me faz admirar uma voz. É quando eu sinto que ela está ligada no coração daquela pessoa. O que bombeia tudo é o coração. Quando sinto que existe aquela emoção que vem do coração, a gente consegue ver e sentir. Isso que me emociona. É difícil você dizer para um cantor para ele cantar com emoção. Ele tem que sentir. É como se a música fosse um produto do coração. Às vezes nem precisa ser através de uma técnica. Às vezes a pessoas nunca estudou, mas traz essa emoção.

https://www.youtube.com/watch?v=q31uEnUYM18

DISCOGRAFIA – A pandemia colocou os idosos como o principal grupo de risco. Como foram pra você esses meses todos de isolamento e tantas perdas?
Vera do Canto e Mello – Eu sofro junto com todos aqueles que se foram e com os familiares, que estão perdendo seus entes. Felizmente, não tive ninguém na minha família que tenha tido o COVID. Sobre o isolamento, não tem sido difícil porque vivo do lado da minha filha, ela tem uma casa ao lado da minha. Vivo com meu marido e meu cachorro. Estou isolada, vendo tudo pela TV e estou muito triste.

DISCOGRAFIA – Como você avalia a atuação do Brasil durante essa pandemia?
Vera do Canto e Mello – Eu acho que os governantes têm que dar o exemplo e não é o que está acontecendo.

DISCOGRAFIA – Qual sua expectativa para quando a vida voltar ao normal? Já sabe como quer comemorar a vida pós-pandemia?
Vera do Canto e Mello – Vivo muito o dia a dia. Não faço planos, projetos. No momento, é apavorante. Não podemos fazer planos, projetos de viagem, porque a situação está no ápice do perigo. Não pensei no que farei quando tudo isso acabar.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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