Jorge du Peixe lança “Baião Granfino”, álbum em que interpreta canções de Luiz Gonzaga (Foto José de Holanda)

Não é hoje que Jorge du Peixe tem em mente um projeto solo. Mas foi aproveitando o intervalo nos shows da Nação Zumbi, forçado pela pandemia, que o vocalista da possante banda pernambucana resolveu aceitar ao convite do produtor Fábio Pinczowski, que já havia dito que produziria o trabalho. E a estreia não poderia ser em melhor estilo: um tributo a Luiz Gonzaga.

O álbum Baião Granfino conta com um time ilustre de músicos, como Carlos Malta (sopros), Mestrinho (sanfona), Swami Jr. (violão) e o baterista Pupillo, seu parceiro por décadas na Nação Zumbi. Misturando clássicos com canções mais obscuras do Rei do Baião, o álbum já tem dois singles lançados – a faixa Rei Bantu saiu no início de agosto e, nesta sexta, 27, O Fole roncou. A seguir, o cantor, compositor e músico pernambucano conta detalhes dessa homenagem que vai ser lançada na íntegra em setembro. Confiram.

DISCOGRAFIA – Você já participou de algumas formações, como a Nação Zumbi, o Los Sebosos Postizos, Afrobomba e a Confraria das Sedutoras. Mas esse é o primeiro trabalho que você realmente assina como solo, como Jorge Du Peixe. Por que só agora? Quando percebeu que era o momento de assinar uma estreia, de fato, solo?
Jorge du Peixe – Na verdade, nem é solo, né? É mais um trabalho que eu faço, posso dizer por minha conta. Onde eu tenho não total propriedade, mas liberdade de escolha em relação a repertório e tudo. Não que eu não tenha em outros projetos, não que eu não tenha na Nação Zumbi. Mas esse eu tô assinando junto com outro produtor, que me ofereceu essa produção. Isso desde 2017, quando num programa chamado Clubversão, dirigido por Fábio Pinczowski, eu fiz uma parceria com o Wilson das Neves, a gente cantou Manhã de carnaval. De lá pra cá, esse convite que ele me fez, de quem eu gostaria de cantar que ele produziria, ficou flutuando aí até que eu tive a ideia de gravar Luiz Gonzaga. Eu não sabia, não imaginava por que vias, nem tinha programado. Mas ainda em 2020, ficamos falando sobre repertório dessa ideia, e em 2021 tentamos realizar. As coisas acontecem assim. Às vezes não tem explicação. Mas não sei se o nome “solo” significa algo sobre a obra que está em questão. Mas vamos simbora.

DISCOGRAFIA – Como o Luiz Gonzaga entrou na sua vida? Lembra da primeira vez que a música dele te chamou atenção?
Jorge du Peixe – Quem é do Nordeste nasce ouvindo Luiz Gonzaga e vive escutando Luiz Gonzaga. É memória afetiva da sua família, da casa do vizinho, alguém sempre tocando. Luiz Gonzaga é um cancioneiro eterno, sua obra já é conhecida mundialmente. O baião já foi um ritmo nacional, né? Contemporâneo da bossa nova e outros gêneros que o Brasil apresentou tão importante quanto. Luiz Gonzaga é uma figura muito importante. Eu lembro muito de sua obra quando ele faleceu em 1989. Eu trabalhava em companhia aérea, estava no aeroporto nessa época e vi todo o barulho que foi o povo esperando o corpo chegar pra ir pra Exú. Isso também não sai da minha cabeça e mostrou o quanto ele era importante. É importante ainda, né? Todos os cancioneiros, os trovadores. Quem não se alimentou da obra de Luiz Gonzaga? Então, pra mim é uma honra também. Importantíssimo trazer isso, não tentar renovar, por que já é uma obra bem à frente do seu tempo. De fato, homenagear, consagrar o rei do baião.

DISCOGRAFIA – Que importância o Luiz Gonzaga tem para a tua formação musical?
Jorge du Peixe – Luiz Gonzaga influencia todo mundo, né? Todo mundo foi influenciado de certa forma. Tenho influência até hoje do que foi Luiz Gonzaga, suas canções, suas harmonias, sua melancolia, da paisagem do Nordeste que ele trazia em suas canções. O papel do músico é ouvir música também, né? Não só fazer, mas tem que se alimentar, se atualizar do que está acontecendo. E com certeza ir atrás dos que começaram, dos que plantaram tudo isso antes, pra poder fazer algo a partir disso. Somos influenciados por tudo, desde literatura, cinema, música. E o papel do músico é ouvir música e saber pra onde anda tudo isso. Ele tem um papel importante na minha carreira também.

DISCOGRAFIA – E qual o papel que o Gonzaga ocupa na música brasileira hoje?
Jorge du Peixe – O Luiz Gonzaga tem um papel na música do Brasil hoje e sempre, né? Hoje e sempre. Estou fazendo essas versões, fazendo esse disco, e já venho descobrindo pessoas lançando, ou alguém fazendo alguma obra em andamento do Luiz Gonzaga. Eu não estou fazendo nada sozinho da obra dele, entendeu? Tem muitas pessoas nessa mesma época mexendo com a obra do Luiz Gonzaga. Isso é bem importante. Se você for fazer uma pesquisa, você vai ver a quantidade de artistas que cantaram Luiz Gonzaga. E continuam cantando.

https://www.youtube.com/watch?v=VhfcPMsLOxs

DISCOGRAFIA – Seu trabalho solo começa com uma homenagem a Luiz Gonzaga. Antes, com os Sebosos, você fez uma homenagem a Jorge Ben. Queria que você fizesse um paralelo entre as obras desses compositores. Que pontos conectam ou não a música deles?
Jorge du Peixe – Dois desbravadores, tanto do amor e sempre também louvando as mulheres. Jorge Ben com sua poesia interestelar e os mistérios do universo, enfim. Enquanto Luiz Gonzaga ali, louvando a Deus, agradecendo a cada pedaço de chão conquistado pelo homem. Humilde, a simplicidade do Brasil feudal, um Brasil profundo que ele pintou essa história da maneira mais bonita. Acho que Jorge Ben e Luiz Gonzaga me seduzem, cada um à sua maneira. Mas eles têm a fé e o amor em comum, com certeza.

DISCOGRAFIA – Queria que você falasse um pouco dessa turma de músicos que te acompanha no disco. Como foi feita essa escalação?
Jorge du Peixe – A gente veio falando ao longo do tempo, quem seria, quem não seria. A maior parte dos músicos quem sugeriu foi o Fábio Pinczowski, produtor do disco. Ele, por ter estúdio lá, o 12 Dólares, onde foi gravado o Baião Granfino, ele já recebia grandes músicos, grandes parceiros musicais, seja no programa Clubversão, em que ele convidava cada artista e direcionava os músicos. E assim foi comigo, quando ele foi lançando nomes e eu também sugeri alguns, claro. Alguns com quem eu já tinha trabalhado, alguns com quem não tinha encontrado. Pupillo (baterista) tocou e o Yaniel Matos, contrabaixista cubano que também toca piano. O Swami Jr (violão) também. É tanta gente boa! O Bruno Buarque na bateria. Fabinho Sá também, Maria Beraldo. Eu te passo por que vou acabar esquecendo aqui. Mas acho que ao todo são 21 músicos que puderam (participar) durante a pandemia… Quiseram, além da vontade de sair de casa, encontrar as pessoas, tocar. Uma grande vontade, uma saudade de encontrar os músicos, entrar num estúdio, subir num palco. O estúdio, de certa maneira, acalentou ali, as pessoas puderam fazer os testes e se encontrar. E, no fim das contas, o Fábio conseguiu formatar três bandas distintas pra alguns temas que a gente selecionou e ficou bem interessante. Alguns, até então, não haviam se encontrado, mas a maioria se conhecia, o que facilitou o entrosamento musical. E todos exímios músicos, sou imensamente agradecido. Ficou muito interessante. Logo menos está aí pra vocês ouvirem.

DISCOGRAFIA – Entre os músicos do “Baião Granfino”, está o Pupillo, seu parceiro por anos na Nação Zumbi. Como ficou a relação com ele depois que o Pupillo saiu da banda?
Jorge du Peixe – O Pupillo está tocando vários projetos, os projetos dele também. Lançando alguns discos que ele faz, coletâneas, fez um de novelas também (“Sonorado”). Está tocando com a Céu. A gente se encontra aqui e ali. Às vezes, estou fazendo outro trabalho, que até então não lancei, mas tô sempre em movimento, mando assim, mando um tema, ele faz uma bateria. Grava em casa. Continua uma relação normal, a gente mantém contato. Tá tudo sob controle. Tudo tranquilo.

https://www.youtube.com/watch?v=DwDBCE5Dwwc

DISCOGRAFIA – O primeiro single é “Rei Bantu”, uma música menos conhecida do repertório do Luiz, mas que tem uma ligação com o maracatu. Como foi pensado o arranjo dessa releitura?
Jorge du Peixe – É um grito, né? É uma música forte. Ela tem uma linha harmônica que não dá pra se desvencilhar. Quando se faz uma versão, a gente tem que louvar esses momentos ali. Por mais que a gente chame de versão, tem que ter um cuidado quando se mexe na obra de outra pessoa. Então, o cuidado é redobrado. E se tratando da obra do mestre Luiz Gonzaga… E o Mestrinho tocou sanfona nessa música e já tinha tocado muito essa música em outros lugares, então não era pouco conhecida. Ele disse que, por onde andou e tocou, seja com Dominguinhos, com quem ele tocava, na turnê que fez com Gilberto Gil, pelo Brasil e mundo afora, ele disse que não era uma música estranha. Ele chegou a pensar isso uma época, mas as pessoas cantavam e dançavam essa música. E não foi tão difícil por conta disso. O Fábio, produtor, já sabia que linha ia trazer, acertamos o tom – às vezes o Luiz Gonzaga tem um tom muito alto e a gente tem que adaptar pro meu, que é mais baixo, mas que não afetasse tanto. E daí, bateria é Pupillo, Carlos Malta tocou pífano e um (sax) barítono. O Swami tocou um violão e as meninas fazendo um backing naquela intenção daquele coro que remete àquela época. Então, ficou bem saudosa, muito forte. E meio maxixe. Eu não pude participar de todas as composições das bases dos arranjos. Participei de um ou outro, complementando e tocando pouquíssima coisa. Mas os arranjos são de Fábio, que arranjou essa música e que ficou realmente muito bonita.

DISCOGRAFIA – O que mais você pode adiantar do repertório? E como foi feita essa seleção em meio ao repertório tão vasto do Luiz?
Jorge du Peixe – O repertório foi difícil. É muita música, muita coisa que eu vi. Algumas delas que eu não ouvia tanto em Recife, seja por Elba Ramalho, seja pelo próprio Luiz Gonzaga, e tantos que cantaram sua obra que eu nunca me imaginei cantando. Tipo Sabiá, Qui nem jiló, tudo isso passou pelo meu ouvido em muitos momentos da minha vida. E agora, entrar num estúdio e cantar isso, vem um flashback, uma história na sua cabeça de certa forma. Mas não foi fácil. Passamos praticamente 2020 até o começo de 2021 finalizando. Eu tinha mandado um (repertório) pra Fábio e ele me mostrou umas outras que eu não lembrava ou não conhecia. Uma Acácia amarela, que é meio um bolero também. Não era só baião que ele cantava, né? E Assum preto. É legal guardar um pouco isso, não soltar o repertório inteiro pra ficar meio de surpresa. Mas falei de umas clássicas aqui.

Cátia de França é convidada de Jorge du Peixe na gravação de “O fole roncou” (Foto José de Holanda)

DISCOGRAFIA – Há 21 anos, você assumia oficialmente os vocais da Nação Zumbi, ocupando um espaço que antes era de um cara que tinha outro timbre, outra postura de palco. Como foi pra você essa transição? Cantar era algo que você já estava nos teus planos? Foi difícil encontrar o seu lugar, sua personalidade, como frontman da banda?
Jorge du Peixe – Olha, eu já cantava com o Chico (Science) algumas músicas, uns Raps e tal. Dividia letra. Se tem uma pessoa que me incentivava muito pra cantar era ele. Difícil claro que foi. Em 1997, com o falecimento, paramos praticamente um ano e voltamos com (o disco) Rádio S.Amb.A. Confesso que não foi fácil, né? Tanto na feitura do disco, ali e tal, a gente teve que andar com as próprias pernas. Desde a pré-produção, ir pro estúdio, gravar o disco aqui em São Paulo com a YBrasil, que foi o selo em que gravamos. Uma produção de Cacá e co-produção nossa (no disco, a produção é creditada à Nação Zumbi. Carlos “Cacá” Lima é identificado como engenheiro de gravação e mixagem). E a gente foi ali engatinhando, não foi fácil retomar as coisas sem Chico. Mas a gente foi se espalhando e tentando se virar. A ideia não era tentar fazer o que Chico fazia, né? Nos conhecemos há muito tempo, cada um tem a sua intenção. O timbre é parecido, não é igual. E a ideia era levar adiante a intenção musical, a obra, o grito que foi dado. E aqui estamos nessa intenção ainda, com um legado vivo e aceso em andamento. Mas, estamos andando. E a ideia não é “frontman”, nós pensamos como uma banda, um coletivo. Eu não decido nada só, a gente sempre em acordo e abertos, tanto na feitura de um disco, quanto decisões. Isso é importante. E assim também era Chico. E, agora, é manter da melhor maneira possível. Descobrir coisas novas, trazer novas intenções musicais e atualizar a música. Atualizar a intenção musical da Nação Zumbi. Acho que é isso, a intenção é essa.

DISCOGRAFIA – Que importância você vê em cantar Luiz Gonzaga no Brasil de hoje?
Jorge du Peixe – Acho que é importante trazer Luiz Gonzaga, um artista desse calibre pro País, agora nesse momento difícil que o País passa de negação e descaso com a cultura, descaso com o esporte, com o cinema. A cinemateca pegando fogo, museu pegando fogo. Um descaso total, uma afronta à cultura que sempre gritou, sempre fez pelo País. Acho importante trazer Luiz Gonzaga que é uma alegoria, um retrato, uma memória forte desse país que sempre foi solidário. Um povo com empatia, um povo com preocupação e um povo com sede de justiça. Acho que o Luiz Gonzaga se faz necessário nos dias de hoje. E que o Brasil volte a ser Brasil.

DISCOGRAFIA – Com o lançamento desse disco, como ficam os planos para essa carreira solo e para a Nação Zumbi?
Jorge du Peixe – Essa última pergunta é muito boa, mas eu não vou saber responder por hora. No caminho é que se vê. Vamos pra frente.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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