Foto: Silvia Zamboni / Divulgação

Por Daniel Medina

Em um país que não lê e que vive sob o brado retumbante do analfabetismo funcional, escrevo:

Há duas semanas Zeca Baleiro postou uma nova canção no Instagram. Canção-resposta que se apropria da provocação, que canibaliza a ofensa recebida e a devolve, com o auxílio da forma, a outro lugar no espaço-tempo.

Primeiro e último (único?) ataque contra artistas do Brasil que se opõem parcial ou integralmente ao Governo Federal, a frase “acabou a mamata!” (o título da canção é Rei da Mamata) faz lama nas redes social toda vez em que alguém se posiciona. O argumento seria que, como belos mercenários e mercenárias, ao ir contra o atual mandatário, tais artistas estariam simplesmente se rebelando pelos patrocínios conquistados e agora perdidos, nascidos em governos anteriores.

Agindo como robôs, pessoas de carne e osso se propõem a repetir essa ofensa, algumas delas de fato decepcionadas por verem seu artista preferido discordar de sua posição política. Em diferentes perfis, na enxurrada de comentário, entre muitos “deixando de seguir” e “deixando de seguir em 3,2,1”, percebi um comentário curioso de uma fã que se referia aos artistas de um modo geral: “Gente, relaxa, eles são assim mesmo, prefiro ficar só com a música”, seguido de apoios contrariados de seus partidários.

É assustador como a seguidora não conseguia relacionar as músicas feitas pelo seu artista preferido, que lhe tocam e emocionam, ao seu posicionamento político.

Se lembro bem, vi um vídeo do psicanalista Christian Dunker em que ele relaciona a postura atual de um “seguidor” ao de um investidor financeiro, depositando ou retirando seus investimentos à medida que os artistas os agradam ou desagradam. Me recordo também da talentosa cantora Mahmundi compartilhando que entre os desafios da nova geração de artistas se encontra o de vencer o medo do cancelamento.

Voltando ao Zeca. Zeca Baleiro é craque. Não faz arminha, faz música, e sua bala doce amarga, urdida com os artifícios do bardo, é ofertada para quem o quer calar. Zeca sabe que em meio a uma devastadora pandemia e uma avalanche de absurdos, artista que não joga pela vida e pelo ser humano nem merece ser chamado de artista.

Até mesmo Lobão (convenhamos, o necessário Lobão, nem que seja para lembrar-nos que o mundo não é a sala da nossa casa. O mundo é grande e a vida é vária) pulou fora do barco depois de tê-lo talhado a mão. Resta a Sérgio Reis e a uma parcela do sertanejo nacional a tarefa de se calar, se fazer de doido ou mesmo apoiar abertamente Bolsonaro e suas medidas perversas contra a vida e sua perseguição, criminalização e ataque sistemático à própria Arte (mesmo porque o sertanejo é agro, o agro é pop e o pop não poupa ninguém).

Por fim, sei que muitos artistas essenciais nem gostariam de se meter diretamente com política. Me lembro, então, Belchior, que canta com seu anarquismo filosófico e sua trajetória sub e suprapartidária: “Qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”.  Até o momento, são quase 570 mil vidas interrompidas seja pelo vírus, seja pelo negacionismo, seja pela incompetência institucionalizada e, diferente de Zeca, o silêncio de muitos ainda grita.

Acabou a mamata? Conta outra, essa Zeca já cantou.

Direct: Prezados Artistas, testes de covid são falhos e apresentam falsos negativos. Se liguem ao fazerem lives e shows

Daniel Medina é compositor, cantor e curioso, sendo cantor nas horas vagas e curioso por ofício. Ele escreve nesse espaço semanalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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