* Texto publicado no dia 10 de novembro, no caderno Vida&Arte, por ocasião da morte de Gal Costa

Pensar em um Brasil sem crise, um tempo de calmaria, onde tudo parece estar nos eixos é de uma utopia quase lisérgica. Intempéries, dificuldades, injustiças e lutas por tempos melhores é uma constância na história. Nesse front de batalhas diárias, muitos artistas deram a cara a tapa e enfrentaram um dragão por dia em nome de mostrar que podemos ter um país mais humano. Entre eles, Maria da Graça Costa Penna Burgos merece um destaque estrelado, um trono, um altar. Não é exagero, Gal Costa foi pioneira em tantas bandeiras, e sempre tão libertária, que chega a ser um erro dizer em que ano ela nasceu. Ela é de muitas épocas, e sempre olhando para a frente.

Fã de João Gilberto, ela ouviu do ídolo que seria a maior cantora do Brasil. O elogio serviu como incentivo para um primeiro disco pautado na bossa nova. Sem amarras, ela logo partiu pro tropicalismo e tornou-se porta-voz dos compositores exilados durante a ditadura militar. Na época, encrespou os cabelos, abraçou os berros de Janis Joplin, virou musa latina e não parou mais de trocar de pele. Nos anos de chumbo, Gal se armou de violão e flor no cabelo, subiu num banco e cantou com as pernas abertas. Contra a caretice e a ignorância, ela respondia com beleza e sensualidade.

Passada a ditadura, a forma mudou, mas não o conteúdo. Gal Costa fez a trilha sonora de muitos carnavais, deixando o público dançar livre numa das festas mais populares do País. Com o surgimento do rock nacional dos anos 1980, ela se aproximou dos novos compositores, cantou Frejat, Lulu Santos, Marina Lima e ainda fez uma versão explosiva de “Brasil” (Cazuza/ George Israel/ Nilo Romero), em ritmo de samba enredo. Nos anos 1990, essa mesma música gerou polêmica no show “O sorriso do gato de Alice”, quando ela cantou com os seios de fora. Passados tantos anos, seu corpo ainda gerava debate.

Mas o Brasil de Gal Costa era imenso e não estava ligado em polêmicas fabricadas. Tanto que, nos anos 2000, num período de mudanças pessoais, ela se impôs um exílio artístico de decidiu por uma temporada de balanço. Fez uma série de discos cantando o interior, a modinha, o samba-canção, canções que fizeram história em vozes que a inspiraram, como Ângela Maria, Isaura Garcia e Linda Batista. Era também uma forma de homenagear a mãe, dona Mariah, que tanto a incentivou colocando os clássicos e populares perto da filha, quando esta ainda nem tinha largado a placenta.

Nos últimos anos, Gal voltou a se conectar com os novos. Puxada por Caetano Veloso, seu compositor mais frequente, a “musa de qualquer estação” flertou com o eletrônico, reverenciou Amy Winehouse e trouxe para seu seio nomes como Rubel, Tim Bernanrdes, Mallu Magalhães e Lirinha. Tantos nomes que cresceram ouvindo suas canções, agora eram eles que alimentavam Gal Costa de novidades. Por outro lado, no sentido inverso, ter uma canção interpretada por/com ela é também uma honraria, um selo de qualidade, uma certeza de estar no caminho certo. Isso por que todas as estradas musicais percorridas por Gal Costa levavam ao mesmo canto: o Brasil livre, democrático, carnavalesco e sorridente.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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