Por Nina Rizzi*
quem tem medo das mulheres sangram? das mulheres que menstruam?
carla, não sei de que lugar lhe chamo, embora estejamos nesse lugar de mulher, embora sim, às vezes é preciso assumir radicalismos. digo não sei de que lugar lhe chamo embora você habite na minha prateleira o lugar de mulher e sangue. mas antes, carla, você já estava no lugar das minhas preferencias e predilescências. há um lugar ali em que quando for cega irei a tatear e tatear e te encontrarei as palavras tão certas, silenciosas, rasgantes, atravessando tudo. tatearei esse lugar que prefiro, e olha, esse lugar é feminino. sagrado sim, profanando tudo.
olho para esse outro lugar do passado que você sempre me mostra ‘das primeiras a me puxar as orelhas e dizer publique o livro!’, este lugar é terno e ainda um tempo de uma outra comunidade. com os meninos que brincavam com cachorros e tocavam violão, até serem abatidos por carros em madrugadas de chuva. uma comunidade de moças que se sentavam na calçada a comentar aquele espetáculo um vestido de noiva.
os vestidos de noiva estão estraçalhados, querida. o sangue ali está tão seco como fosse apenas a mancha inapagável de um soco. e já não é a comunidade a mesma. e a violência já é esta coisa que não se adentra aos bocadinhos, mas de onde saímos, respiramos, e dê a mão, e tentamos sair vivas de um escombro, o vestido de noiva comunidade que não pode existir se não enquanto vigília.
e há ainda este outro lugar de sangue. o nosso sangue de meninas e mulheres e que cheira melhor que a xampu ou qualquer perfume que serve apenas para sufocar o nosso cheiro a sangue, um cheiro de mulher.
eu também fui a menina do evento que vazou na escola. e havia uma anágua branca. a menina batida e pisada porque manchou a coisa pura e branca.
mas pegava o sangue com mão em concha e fazia pinturinhas em conchas do mar que ainda não tinha visto, conchas ganhadas de uma mulher, trazidas desde o seu útero – sei que já visitou o útero de uma mulher como a chuva de novo vem me visitar. esse lugar de guardar os mistérios tão mais que belos. e esfregava o sangue no corpo de uma mulher inventando caligrafias tão antigas que dissessem – para sempre nuas, escritas a sangue. como uma casa na lua, que é também uma mulher que sangra. E ri quando canta.
projetada gerada
nascida para carregar o teto
sustentar o mundo sobre a família
o lar os convivas os cachorros
dos meus filhos os olhos do bom marido
sob a condição nascida
para não me meter em encrencas
braços nascidos desenvolvidos para acudir
nascida para aceitar que nasci assim
com a cabeça um palmo abaixo dos ombros
dos meus ombros dos teus ombros
dos nossos projetada barriga de carregar
avental maridos filhos comida lombriga
ovos apunhalados gonorreia sementes
por baixo tenho do mundo que seguro
acima por baixo o baixo sal dos dias
garanto a casa enquanto cozinho lavo
limpo amo me vingo como e sou comida
é mais que o suficiente negar
qualquer um dos meus músculos gestos
para morrer e matar daquilo que me faz nascida
feito
amparo
se me retiro ora
ora nascida para não me retirar
tua escrita me chega também a sangue e brilha o papel que nunca poderia ser branco. esse lugar de ser o que quiser, o tudo e o impossível. suas poemas me chegam tão negras, tão puras. e depois de tanto tempo e o sangue com seus cheiros de vida ainda me chegam com uma só palavra: amor-mulher, e suas redes.
creio na rede e dela cuido com as
chaves que me são oferendas da
natureza e da natureza das coisas
ou me perco nos sinais ou me faço dançarina deles
seguem meus dedos a costela do peixe
da sorte canta ali um galo e já a trama toca a flora
cai ali uma mulher no barro sobe ali a nuvem e
são tantos mares cruzados numa só onda
tivemos dias imensos da chuva oceância
e com que calda o vestido de ir buscar lagostim
defendo flores nos cabelos creio nos espinhos do idioma
e com que véu as noivas de buscar ostras
com que choro segue a trama do momento
central puxado de cordões da solidão
aquele homem foi tragado e cuspido e repartido
pelo mar
voltou em dois e dos dois uma multidão
que nunca mais abriu a multíplice boca
com que beijo com que consolação
com que pássaro tramar agora a ida de um
dos filhos a acenada mãe que trama
com que rede me apego agora quando a
fome é imensidão nos olhos de sal?
creio então no silêncio tramado a crer
tanta areia para pouco altar
com que calda com que véu acenada a
mãe a instalar redes de milagres como
é o milagre do parto antes mesmo da crendice
gestacional?
ela tecia colares de sementes
creio
ela tecia colares de sementes e búzios
previa redes previa o amor dos peixes adentro
***
Carla Diacov
*Carla Diacov (São Bernardo do Campo, 1975). Formada em Teatro; se atraca com as plásticas o tempo inteiro, movimento que a serve a construir em conjunto de matérias ou que a traz de volta às letras somando algo da extração da borracha. Gosta de abordar o sangue. Tende a ser serial. Livra-se em fazer a loca (livro digital, Edições Ellenismos, 2014), Amanhã Alguém Morre no Samba (Douda Correria, Portugal, 2015), A metáfora mais Gentil do Mundo Gentil, (Macondo Edições, Juiz de fora), Ninguém Vai Poder Dizer Que Eu Não Disse (Douda Correria, 2016), bater bater no yuri (livro digital, Enfermaria 6, 2017: www.enfermaria6.com/blog/2017/8/7/carla-diacov-bater-bater-no-yuri), A Menstruação de Valter Hugo Mãe (editado pelo escritor português, no projeto não comercial Casa Mãe, Portugal, 2017), Dois Pontos Pescoço X Sobreviventes (no prelo pela Editora Urutau). Todas as imagens que ilustram essa carta são da autora, cuja matéria-obra-prima é sangue menstrual. Mais aqui: [https://www.instagram.com/diacovcarla/]
*Nina Rizzi é escritora, tradutora e poeta. Tem textos publicados em revistas, jornais, suplementos e antologias. É também integrante do grupo Leituras Públicas. Gosta de saraus, de periferia, do Centro de Fortaleza e de eventos literários. Ela escreve mensalmente no blog Leituras da Bel sobre mulher e poesia.