Por Marília Lovatel*

Ilustração de Jéssica Gabrielle Lima

Feitos de açúcar

Este texto é para quem passeia os pés descalços no raso, brincando de pisar o chão, chutando a espuma, a esparra mar, e perde o equilíbrio com a onda que cresce, e que, vinda não se sabe de onde, devolve o passeio, leva o mar a passear, subir pelo corpo, em espuma envolvente, a espalhargente, a deter gente, quando se quer andar rasgando o tecido das águas em direção à longilínea, linha longe horizontal. Talvez este texto seja para quem sente cair uns pingos esparsos na palma da mão, pingos-espaços abrindo vazios na palma onde cabe a alma, quando o ser se constitui de mínimos, múltiplos cristais doces, forma delicada prestes a ruir. Ou ainda para quem apara no rosto o chuvisco, anda ao relento, sem pressa, lento, re lento, e perde a visão com o desabar do céu, eis cá o céu, escarcéu. Este texto pode até ser indicado a quem toma uma taça de vinho, e, a estas alturas, adivinho as garrafas e as rolhas de uma coleção de cortiças que, inconformadas com a separação irreversível, permanecem marcadas, perfumadas de um lado só, no lado só (e só) da lembrança. Tenho as minhas dúvidas de que este texto sirva a quem não preenche as vagas dos dedos dos pés com areia molhada, desaprova o tempo nublado, a quem não aprecia um tinto encorpado, ou desconhece o próprio corpo tinto pela emoção. Um tanto de precaução conduz a vida da maioria, cuja vida não conduz ao que acre dito nestas linhas horizontais. Sim, acredito que este texto não deva ser lido por quem preserva a sua integridade, preza a sua inteireza e confia em uma felicidade fina, sob medida. Contida. Constante. Palpável. Embora ela seja tão diminuta como um grão transparente. Este texto, com toda a certeza, não é para quem prefere adoçantes. E, para fugir a um destino de sal, jamais espiaria as tais cidades, mesmo por cima do ombro. Não é definitivamente para quem ignora que somos todos estátuas de açúcar, criadas para desmanchar, desfazer a mancha da sombra que marca nas superfícies a nossa sutil existência. Não é para quem nem desconfia que viver é se deixar dissolver.

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Marília Lovatel

Marília Lovatel cursou letras na UECE e é mestre em literatura pela UFC. É professora da Pós-Graduação em Escrita Literária no Centro Universitário Farias Brito. No intervalo de 6 anos publicou 10 livros infanto-juvenis, títulos apresentados por Rachel de Queiroz, Ignácio de Loyola Brandão, Ana Miranda, Antônio Torres e Socorro Acioli. Em 2019, lançou um livro de poemas e aforismos em parceria com Marcelo Peloggio. Duas vezes integrou o Catálogo de Bolonha e foi finalista do Prêmio Jabuti 2017.

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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