Depois que O POVO iniciou a série de reportagens sobre os desmandos praticados por alguns policiais do Ronda do Quarteirão, o jornal começou a receber  informações sobre o assunto, enviadas por leitores.

O Ronda do Quarteirão, criado pelo governo do Estado do Ceará há cerca de dois anos, foi apresentando como uma “nova política”, comunitária e respeitadora dos direitos do cidadão.

Entre essa material chegou um exemplar do Campus, jornal laboratório da Faculdade de Comunicação da UnB [Universidade de Brasília]. A manchete da edição de maio deste ano – em reportagem assinada por Maria Scodeler e Verônica Honório – é:

“No aniversário da Lei da Anistia, o Campus localiza em Fortaleza o ex-delegado da PF, José Armando Costa, recordista em acusações de tortura na ditadura militar”

José Armando Costa é o corregedor-geral dos Órgãos de Segurança Pública do Ceará, entrevistado na edição de ontem do O POVO. Entre as declarações do corregedor-geral aos repórteres Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio, responsáveis pela série de reportagens, está a afirmativa de que o governo do Estado “está mentindo” ao dizer que o convocou para uma reunião para que explicasse a morosidade nas investigações e que a Corregedoria está “sucateada”. Veja post. Sobre o Ronda do Quarteirão fiz ainda outro post, aqui.

Segundo o jornal Campus, ao saber que a reportagem seria sobre os 30 anos da anisitia, José Armando Costa disse: “Acho isso uma supersacanagem [eu] era considerado a ‘mãe’ da polícia, porque era muito humano”.

Depois disse ter a “vida muito limpa” e questionou a repórter: “Onde você está querendo chegar com isso?”. Na continuidade, uma “lição” de jornalismo: “Eu acho que este país, em termos de jornalismo está muito atrás; vamos olhar para frente”. E encerrou a conversa, segundo o jornal.

A reportagem partiu da leitura do relatório “Brasil Nunca Mais”, projeto da Arquidiocese de São Paulo, divulgado em 1985. Transformado em livro, o projeto lista 249 nomes, de militares e civis, acusados de terem ligação direta com a tortura, no período de 1964 [início da ditadura militar] até 1979. Entre os acusados, 25 são agentes ou delegados da Polícia Federal. O regime militar teria fim em 1985. 

Na época, José Armando Costa era delegado da Polícia Federal em Fortaleza. Em depoimento à Justiça Militar, nesse período, segundo o Campus, os presos relataram que, apesar de não participar diretamente das torturas, Costa interrogava os presos logo depois das sessões de suplício.

O Campus reproduz um depoimento de 1973 do engenheiro Lavoisier Alves Cavalcante. Logo após uma sessão de tortura, coube a Costa interrogá-lo, ameaçando-o: “Olha rapaz, se você não concordar com isso que eu mandei colocar (na confissão), você pode entrar numa faixa pesada”.

O Campus considerou José Armando Costa o “recordista em acusações de tortura”, por ele ter sido citado em seis depoimentos de presos políticos, o maior número, segundo o jornal, de acusações contra policiais federais.

Mário Albuquerque, ex-preso político e presidente da Associação 64/68-Anistia também deu depoimento ao Campus. Segundo ele, a sociedade tem dificuldade em compreender que uma pessoal “normal” pode ter sido um torturador. “As pessoas pensam que os torturadores são diferentes, são uns monstros; às vezes, ele são bons pais de família, bons vizinhos, mas são torturadores”.

É óbvio que as acusações contra o corregedor-geral das polícias no Ceará são pesadas. Uma pessoa assim não deveria ocupar o cargo que ele ocupa. sem contar que, provadas as acusações contra ele, deveria receber a punição correspondente aos crimes cometidos.

Mas faria duas ressalvas à matéria do jornal Campus: a primeira é que José Armando Costa não foi acusado de ser torturador, mas de ser conivente com a tortura, de incentivá-la e de se aproveitar dessa prática hedionda. O que é tão grave quanto torturar, mas existem diferenças entre uma prática e outra.

O caso é parecido com a situação do também delegado da PF, João Batista Campelo, que foi nomeado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso como delegado-geral da Polícia Federal. Contra ele pesavam acusações parecidas às que recebe agora José Armando Costa. Uma série de matérias publicadas pelo O POVO, que recebeu o Prêmio Esso Regional de 1999, contribuiu para o afastamento do delegado. Veja artigo aqui.

A outra ressalva é um certo exagero em atribuir a José Armando Costa o título de “recordista em acusações de tortura”, por ele ter sido o policial federal  mais citado – entre os 25 acusados – nos depoimentos dos presos. No total havia 249 pessoas acusadas de envolvimento com suplício dos presos. As acusações contra Costa já são suficientes por si só, sem a necessidade de pesar a mão.

Tirante isso, é de se louvar a iniciativa das duas estudantes-repórteres em levantar o assunto quando a Lei da Anistia está para completar 30 anos – promulgada no dia 28 de agosto de 1979, pelo então presidente João Baptista Figueiredo, o último da linhagem militar.

Mais

Outro documento enviado ao O POVO  foi um recorte de um jornal, reproduzido do projeto Arquivo Ana Lagôa, da Ufscar [Universidade Federal de São Carlos, SP]. O recorte não traz a data, mas a matéria cita Fernando Lyra, que foi ministro da Justiça entre 1985 e 1986, na presidência de José Sarney.

O caso, explica o jornal, é que o ministro estava sendo pressionado “por mais de 50 entidades locais” para afastar José Armando Costa do cargo de superintendente da Polícia Federal em Brasília.

O motivo, segundo o jornal, é por ele ser citado como torturador no livro Brasil Nunca Mais.

O ano provável do jornal é 1986, pois, no início da matéria é citada a ironia de José Armando Costa, em livro escrito em 1980 – “Teoria e prática do Direito disciplinar” -, ter dedicado um capítulo para dissertar sobre o milenar uso da tortura como prática de arrancar confissões.

No livro, José Armando Costa manifesta-se contra a tortura, escrevendo, segundo o jornal, que esse método consegue arrancar confissões “na maioria das vezes mentirosas, pronunciadas em momento de desespero”. Na sequência, segundo descreve o jornal, ele manifesta-se contra a tortura, afirmando que a prática “a par de repugnável pela consciência predominante, configura alta degradação do gênero humano”.

Costa ainda diz no livro, segundo a matéria do jornal, que “sob todos os ângulos e aspectos, a tortura é um ato desumano, praticado por policiais despreparados e comodistas, que recorrem a esse meio que tanto enxovalha a nossa civilização, para dar vazão a seus instintos de perversidade, inveja e vingança difusa”. Veja aqui, em pdf.

Fado tropical

Será que o corregedor-geral das policias do Ceará, José Armando Costa, é um caso parecido ao descrito na música “Fado tropical”, de Chico Buaque e Ruy Guerra, mostrando a distância entre “intenção e gesto”? Veja trechos:

«Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em
torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa…»