Enviada à cidade de Mulungu (CE) para verificar a suposta aparição de um Ovni em um bananal – que estava provocando medo nos moradores – , a repórter Daniela Nogueira, do O POVO, viu algo, digamos assim, muito mais terreno.

Começou a ouvir aqui e ali algo sobre um “golpe da casa”, interessou-se, perguntou, foi atrás – e fez aquilo que se chama jornalismo de interesse público.

Daniela começou a puxar o fio da meada. Descobriu que uma tal de Federação de Pescadores e Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado do Ceará (Fetraace), presidida por Franscisco Eraque Roque, havia lesado cerca de 1.500 famílias em várias cidades do interior, prometendo-lhes construir casas por meio de um projeto chamado Nossa Morada.  Cada interessado, para se “cadastrar” no projeto, precisava pagar entre R$ 150 a R$ 300.

A repórter continuou o trabalho. Descobriu que Francisco Eraque Roque, o presidente da Fretraace, respondia a 35 processos na Justiça (estadual e federal), a maioria por estelionato, o famoso artigo 171 do Código Penal. Os processos se espalham por várias cidades do interior.

E ainda mais, que Eraque Roque já fora condenado em um dos processos e cumpre pena em regime semiaberto desde 2007. Em outro processo, movido pela prórpia sogra, ele também já tem sentença condenatória.

Eraque Roque é tão esperto e atrevido – ou bem relacionado – que chegou a receber uma homenagem à entidade em “sessão solenene” na Assembléia Legislativa, em setembro do ano passado.

Na edição de hoje [25/8/2009], O POVO informa que o BNB – depois de já ter liberado R$ 12 mil – cancelou o restante do repasse referente a convênio que mantinha com a Fetraace para “capacitar líderes na agricultura familiar”. [O BNB cancelar repasse de dinheiro era o esperável; a surpresa é o banco ter feito convênio com uma associação presidida por um sujeito com uma folha corrida dessas.]

Duas lições

1. Um repórter não pode somente “cumprir a pauta” indicada pelo editor. Tem de ficar de olhos e ouvidos bem abertos. Fosse um repórter desinteressado, aqueles que gostam da zona de conforto, Daniela teria se restringido a fazer apenas o que lhe havia mandado o editor.

2. Hoje muitos afirmam que a internet e os blogs substituiem o jornalismo “tradicional”. Este exemplo mostra que – pelo menos por enquanto – isso não é possível. Quantos blogs teriam condições de fazer essa reportagem, de inegável interesse público? Quantos sites – pelo menos no Ceará – poderiam destacar um repórter para ficar várias dias levantando uma única história: creio que nenhum.

Portanto, sem negar a importância dos blogs – agora mesmo estou escrevendo em um – é preciso observar que a “imprensa tradicional” ainda – e creio que será por um bom tempo – é imprescindível.

…….

[Tinha posto o número 3 no item anterior, pelo que me chamou a atenção, de forma bem-humorada, o leitor Márcio Dorneles: veja nos comentários.]

? A propósito, ao informar no Twitter sobre esta postagem, pus um título que talvez ficasse mais chamativo neste post: “Repórter vai atrás de Ovni e descobre ‘golpe da casa'”.