Na edição de 7 de março de 2003 do O POVO, assinei matéria, feita a partir de uma entrevista com a professora Maria Dolores Mota, da Universidade Federal do Ceará, na qual ela confronta o que chama “de origem mítica do 8 de março”, divulgada pelo movimento feminista e sindical.
Segundo ela, não existiu o incêndio proposital, no qual teriam morrido várias mulheres, que lutavam pela redução da jornada de trabalho. Para a professora, o 8 de março não tem uma origem em um acontecimento isolado, mas foi fruto de uma seqüência de fatos, que culminaram na escolha da data.
Como sei que essa narrativa, que tem sentido de “fabulador do real”, como diz a professora, será mais uma vez contada por jornais e boletins sindicais, reproduzo abaixo a matéria publicada em 7 de março de 2003 no O POVO.
A construção mítica do 8 de março
Plínio Bortolotti
”No dia 8 de março de 1857, trabalhadoras de uma indústria têxtil de Nova York, em greve pela diminuição da jornada de trabalho, foram trancadas e a fábrica incendiada, provocando a morte de 129 delas. No 2º Congresso Internacional das Mulheres Socialistas, em 1910, em Copenhague, Clara Zetkin, militante alemã, editora do jornal feminista A Igualdade, propõe essa data como referência para todas mulheres do mundo celebrarem e comemoram suas lutas”.
Com pequenas variações, essa é a explicação do movimento feminista – reproduzida a cada ano pelos jornais – para origem do Dia Internacional da Mulher. No entanto, a pesquisadora e professora do curso de Economia Doméstica da Universidade Federal do Ceará (UFC), Maria Dolores Mota Farias, afirma que essa é a origem ”mítica” do 8 de março, formulada a partir de uma narrativa que adquire um sentido ”fabulador do real”. Do suposto incêndio de 1857 (ou 1908 segundo outras versões), não foram encontrados registros na chamada imprensa burguesa da época, e nem nos periódicos socialistas.
A professora afirma que tal incêndio nunca existiu, e que o Dia Internacional da Mulher surgiu de uma ”colcha de retalhos”, várias mobilizações promovidas por organizações feministas – principalmente as socialistas – em vários países do mundo, que se fundiram, desaguando em uma data unificada mundialmente para marcar a luta da mulheres.
Segundo Dolores, o que a imprensa da época registra é um incêndio ocorrido em 29 de março de 1911 – que não foi proposital -, na fábrica de roupas da Triangle Shirt Waist Company, em Nova York (Estados Unidos), que matou 134 operários, a maioria mulheres. O jornal Solidariedade, dos trabalhadores nas indústrias, registra o fato com o título ”Um crime capitalista”, e anota no texto: ”Engaiolados nos andares mais altos, com as portas fechadas para obrigá-los a ficar no trabalho, sem nenhum escada de segurança (…), os trabalhadores apavorados, a maior parte mulheres jovens, pulavam das janelas em número tão grande que na realidade parecia aos bombeiros se encontrar sob uma chuva de seres humanos”.
Este incêndio ocorreu um ano depois do 2º Congresso das Mulheres Socialistas, que foi em 1910, não poderia, portanto, ter servido de inspiração para a proposta Dia Internacional da Mulher. A parte ”verdadeira” do ”mito fundador” é que a militante comunista alemã Clara Zetkin, propôs a criação de um dia internacional da mulher logo após este congresso de mulheres socialistas.
Zetkin publicou um artigo na revista Igualdade, dirigida por ela, em que levanta o assunto, mas não estabelece uma data específica para a celebração. Também não fez referência ao suposto incêndio de 8 de março de 1857 (ou 1908). Para Dolores essa é mais uma prova de que o fato não existiu, pois seria inadmissível que o incêndio e as vidas sacrificadas não fossem lembradas na ocasião em que se fez proposta de tamanha envergadura.
A proposta de um dia internacional das mulheres já vinha sendo elaborado há bastante tempo pelos socialistas americanos e europeus. Em alguns países já havia uma data determinada para reuniões e reflexão sobre o papel das mulheres na sociedade. A publicação da proposta na revista de Clara Zetkin, que tinha 82 mil assinantes, na Europa e fora dela, deve ter dado mais visibilidade à proposta do estabelecimento de uma data unificada. Porém, a história não registra como o 8 de março se tornou um marco na luta das feministas.
O Dia Internacional da Mulher foi reconhecido oficialmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura (Unesco), em 1977. A Organização das Nações Unidas (ONU) realizara em 1975 a 1ª Conferência Internacional da Mulher, no México, reconhecendo o 8 de março, e declarando 1975-1985 a década da mulher.
Caro Plínio,
Recentemente, encontrei um artigo da professora Vera Soares, uma militante feminista, no site da Fundação Perseu Abramo, que discute justamente este ponto e traz algumas informações adicionais. A íntegra do artigo pode ser encontrado no link http://www.fpa.org.br/conteudo/mitos-e-realidades-do-8-de-marco-por-vera-soares ,mas faço questão de reproduzir um trecho:
“Uma das primeiras publicações sobre as origens do 8 de Março é o livro da pesquisadora canadense, Renée Côté, de 1984, O dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas. Ela nos conta, de modo nada acadêmico, que certezas criadas pelos movimentos feministas são pura ficção e derruba um mito tão caro para nós feministas, que tanto lutamos para afirmar esta data, como um dia de luta das mulheres.
Hoje, existem outros estudos, acompanhados de vasta bibliografia que vão no mesmo sentido das pesquisas de Renée. No Brasil, está sendo lançado neste 8 de Março As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres, da historiadora espanhola Ana Isabel Álvarez González, pela SOF – Sempre Viva Organização Feminista e Editora Expressão Popular.
(…)
Esta história teve origens, provavelmente, em pelo menos três fatos, dois deles ocorridos na mesma cidade de Nova York, 50 anos, depois da suposta greve. O primeiro foi uma longa greve de costureiras que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910. O segundo foi um dos tantos acidentes de trabalho, ocorridos no começo do século 20, ocorrido na mesma cidade da greve das costureiras, em 1911. Nesse episódio, em 25 de março, durante um incêndio, causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma fábrica têxtil, foi registrado a morte de 146 pessoas, sendo 125 mulheres. As portas da fábrica estavam fechadas, como de costume, para que as operárias não se dispersassem na hora do almoço. Esse incêndio foi, evidentemente, descrito pelos jornais socialistas, numerosos nos EUA naqueles anos, como um crime cometido pelos patrões, pelo capitalismo. E o terceiro fato remete à Revolução Russa. No dia 8 de março 1917 (23 de fevereiro no Calendário Juliano), trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve e pediram apoio aos metalúrgicos. Para alguns historiadores da Revolução de 17, como também afirma Trotski, esta teria sido uma greve espontânea, não organizada, e seria o primeiro momento da Revolução de Outubro.
Pouco a pouco, o mito dessa greve das 129 operárias queimadas vivas se firmou e apagou da memória histórica das mulheres e dos homens outras datas reais de greves e congressos socialistas que determinaram o Dia das Mulheres, sua data de comemoração e seu caráter político. As pesquisadoras das origens do 8 de março nos afirmam que essa greve, contada tantas vezes, nunca existiu. É um mito criado a partir da confusão entre a greve de 1910, nos EUA; a de 1917, na Rússia e o incêndio de 1911, em Nova York. Em 1970, centenas de milhares de mulheres americanas, ao participarem de manifestações contra a guerra do Vietnã e com um forte movimento feminista, publicam um boletim reafirmando esse mito, e que vai se repetir mundo afora. A incorporação pela ONU do 8 de Março, em 1975, como data mundial contribuiu para essa retomada em larga escala, ao mesmo tempo que também incentivou um viés institucional da comemoração.
Essa história-mito tem mais um aspecto, pois partir dos anos 1970, o mundo todo a reproduzirá como verdadeira. Aparecerá até um pano de cor lilás, que as mulheres estariam tecendo antes da greve. Daquela greve que não existiu. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, diz o ditado. Por que não vermelho? Porque vermelhas eram as bandeiras das mulheres da Internacional. Vermelhas eram as bandeiras de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai, delegadas dos seus partidos, na conferência na Dinamarca, em 1910.
O livro As Origens e a Comemoração do Dia Internacional das Mulheres, de Ana Isabel Álvarez González, é um livro histórico e vai retratar o debate da época, no campo do socialismo. A autora recompõe com detalhes a história da criação do Dia Internacional das Mulheres e a definição posterior de um dia unificado para sua comemoração, o 8 de março, acontecimentos diretamente vinculados à luta das mulheres socialistas. Ao mesmo tempo, aponta os dados que nos ajudam a compreender como uma versão tão diferente se impôs por tanto tempo em mais de um país.”
Erick,
Agradeço o seu comentário. Li o artigo que v. indicou e o copiei para o meu arquivo. Vamos esperar o livro. Creio que se ganha muito mais contando a história verdadeira do que se mitificando ou “fabulando” uma história, como diz a professora Maria Dolores.
Plínio