Reprodução da coluna “Menu Político”, publicado no caderno “People”, O POVO, edição de 21/9/2014.

Arte: Carlus

Desqualificação da política e o risco à democracia
Plínio Bortolotti

O professor Venício A. Lima, arguto observador da mídia, costuma recorrer com frequência em seus escritos a um argumento desenvolvido, na década de 1980, pela professora Maria do Carmo Campello de Souza (1936-2006) para apontar que a desqualificação sistemática dos políticos e da política põe em risco o sistema democrático.

Escreve a professora: “Parece-nos possível dizer (…) que os meios de comunicação têm tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame [culpar o sistema]. Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária parlamentar. (…)

“O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (…) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação o apresentam como homegeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (…). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (…)”.

A professora Maria do Carmos cita os exemplos da Alemanha e da Áustria, na década de 1930, lembrando que “o processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime democrático, eles já se encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura”. E, como se sabe, a derrocada da democracia alemã – a República de Weimar – possibilitou a ascensão do nazismo.

O processo de system blame significa culpar o sistema, isto é, a própria democracia, pelos problemas por quais passam o país. Observe-se como é comum ouvir-se que na ditadura “não havia corrupção”, esquecendo-se propositalmente, quem usa tal argumento, que o problema havia, porém ficava submerso, devido à censura à imprensa.

Tem razão também a professora quando afirma que alguns setores são poupados de crítica mais severa. Pode-se citar o poder empresarial, por exemplo, muito pouco investigado pela imprensa. Será que no mundo dos negócios não há sonegação, pagamento de propinas e outros desmandos que, ao fim e ao cabo são suportados pelo cidadão? A corrupção tem apenas uma ponta, a do corrompido (políticos), ou existe também o agente corrompedor (empresário), que costuma sair ileso das investigações e condenações?

Porém, se desqualificar a política é um perigo à democracia, deixar tudo como está, também pode sê-lo. Vejam nas notas abaixo como é adverso, para dizer o mínimo, o balanço que este jornal fez da atuação da Assembleia Legislativa do Ceará. Por isso, talvez tenha chegado a hora de uma decisão firme dos cidadãos para – por meios democráticos – salvar a política dos políticos.

NOTAS

Assembleia
A reportagem mostra a quase ausência de atuação Assembleia Legislativa nas duas principais dimensões de uma casa legislativa – a produção de leis e a fiscalização do Executivo. Dos projetos aprovados nesta legislatura, 78% foram para nomear órgãos públicos e criar datas comemorativas.

Preço
Quanto à fiscalização, foram barradas todas as iniciativas que pudessem incomodar Executivo, incluindo até rejeição de pedidos de esclarecimento. E essa Assembleia custa, por ano, R$ 363,027 milhões ao contribuinte, ou seja, quase um milhão de reais por dia.

Livro
O conceito desenvolvido pela professora Maria do Carmo está no capítulo “A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles”, no livro Democratizando o Brasil, organizado por Alfred Stepan (1988). Os trechos reproduzidos neste artigo foram colhidos do texto “As manifestações de junho e a mídia”, do professor Venício Lima, revista Teoria e Debate: http://migre.me/lDte4. (As conclusões são de minha responsabilidade.)

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