Reprodução da coluna “Menu Político”, publicada no caderno “People”, edição de 1º/2/2015 do O POVO.

CarlusCome salsicha, pequena
Plínio Bortolotti

Misteriosa é a mente humana: não sei por quais cargas d´água, ao ler sobre a “polêmica” publicidade em que a apresentadora televisiva Angélica aparece comendo salsicha, lembrei-me de trecho de “Tabacaria”, talvez um dos mais conhecidos poemas de Fernando Pessoa (assinado pelo heterônimo Álvaro Campos):

(Come chocolates, pequena;/ Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates./ Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria./ Come, pequena suja, come!/ Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,/ Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

O fato é que Angélica, que afirmava não consumir carnes “vermelhas”, virou garota propaganda de uma marca de salsichas (junto com o marido Luciano Huck). O episódio ocasionou “grande repercussão nas redes sociais”, segundo o Meio & Mensagem, boletim especializado em publicidade e propaganda. Mantendo apenas uma conta no Twitter e um blog, não observei tamanha retumbância, porém o assunto merece comentários.

Óbvio é o seguinte: se Fernando Pessoa pensou na transcendência ao observar a criança comendo uma simples barra de chocolate, Angélica deve ter meditado profundamente sobre a soma que receberia para deglutir a salsicha e o quanto engordaria a sua já recheada conta bancária. Sem dúvida, o único motivo que levou o casal 20 a fazer propaganda de salsicha é este: dinheiro. Qualquer outra explicação ou justificativa é perfumaria para enganar trouxas ou “fãs”. (O vegetariano rei Roberto Carlos também capitulou ao argumento argentário ao fazer propaganda para um frigorífico.)

A empresa fabricante do comestível, a Perdigão, afirma que o objetivo é “posicionar” sua marca como “mais popular”, diferenciando-se da concorrente, que alcança um público, digamos, “menos popular”. Mas, pense: não parece óbvio, caso Angélica gostasse de salsicha, que ela procuraria consumir uma marca mais refinada, a melhor que o dinheiro pudesse comprar, em vez de um produto “popular”?

Em nota divulgada pela BRF (controladora da Perdigão), Angélica justifica-se da seguinte maneira: “Fui escolhida para representar a Perdigão por meu papel como mulher dona de casa, que escolhe os produtos para a família e amigos [pausa para risos]. Além disso, como salsicha, adoro cachorro quente e estou comendo no comercial porque realmente gosto [gargalhadas]”. Pela minha vista, considero muito duvidoso que ela alimente os próprios filhos com a salsicha que recomenda para os outros.

Assim como Xuxa nunca deve ter usado os artigos de “beleza” Monange (lembram?), nenhum dos artistas, ricos e famosos, consomem o que eles recomendam para o “público alvo” das campanhas, normalmente os pobres e remediados das classes médias, ávidos por emularem seus “ídolos”.

No comercial, Angélica e Luciano Huck aparecem em uma bela mansão recebendo um grupo de pessoas, no que parece ser uma confraternização ou um almoço de domingo. O filme tem cores suaves, o clima é ameno, as pessoas são de várias idades, sugerindo uma família, todos parecem muito felizes, incluindo o cachorro. É isso que muitos querem ter, o suposto conto de fadas da vida do casal; entanto levarão para casa apenas um cilindro vermelho, cheio de carne industrial, preparada com as partes que sobraram da fabricação de outros produtos: carne de boi, porco e frango, com cartilagem e ossos, transformados em uma pasta, misturados com farinha, tempero, conservantes e corantes – depois embutida e cozida.

NOTAS

Dinheiro
Em pesquisa não consegui descobri qual o valor pago ao casal pela publicidade; as notícias falam em “contrato milionário” ou “vários milhões”. Vídeo da propaganda.

Tartufos
Nada contra artista fazer comercial e com isso ganhar muito dinheiro. A questão é a hipocrisia dos que dizem uma coisa e fazem outra, dependendo do montante que se lhes põe à frente. Angélica declarava não comer carne vermelha desde os 12 anos de idade, por ter pena dos animais. Mesmo sendo rica, os cifrões tiveram o condão de fazer com que reduzisse a intensidade de seus sentimentos pelos bichos com asas ou de quatro patas.

Poesia
“Tabacaria” é o poema de Fernando Pessoa com o famoso princípio: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Aqui, completo.

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