Quase uma semana depois de Adriano Magalhães da Nóbrega ter sido morto pelo Polícia Militar da Bahia – em uma operação até agora mal explicada –, o presidente Jair Bolsonaro resolveu falar sobre o assunto.

O “capitão Adriano”, que integrou o Bope (Batalhão e Operações Especiais) e foi expulso da Polícia Militar, era um dos milicianos mais conhecidos do Rio de Janeiro, acusado de chefiar o “Escritório do Crime”, grupo especializado em assassinato, extorsão, lavagem de dinheiro e outros crimes. Ronnie Lessa preso sob a acusação de ter feitos os disparos fatais contra Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, seria integrante da mesma organização criminosa

Bolsonaro afirmou ter conhecido o miliciano Adriano Nóbrega em 2005 (ano em que recebeu uma das duas homenagens que lhe conferiu o então deputado Flávio Bolsonaro), e que nunca mais teve contato com ele.

O presidente declarou o seguinte: “Eu não conheço a milícia do Rio de Janeiro, não existe nenhuma ligação minha com a milícia do Rio de Janeiro, zero, zero”. Disse também desconhecer os antecedentes de Adriano: “Naquele ano (2005), ele é [sic] um herói da Polícia Militar”.

1. Seria impossível Bolsonaro não conhecer a milícia do Rio de Janeiro:

 a) todo mundo sabe que existe;

b) várias vezes ele e os filhos fizeram elogios às milícias, considerando-as guardiãs da sociedade.

2. Se o presidente não fala com o “capitão Adriano” desde 2005, para seu filho Flavio é difícil negar proximidade com o miliciano, pois empregou em seu gabinete – quando era deputado estadual no Rio de Janeiro – a mulher e a mãe de Adriano. Elas são suspeitas, inclusive, de participar do esquema da “rachadinha”, em seu gabinete, organizada pelo desaparecido Fabrício Queiroz (onde ele está?).

Os itens abaixo, por ordem cronológica, mostram o relacionamento dos Bolsonaros com as milícias. Observem que na relação foram anotados apenas fatos, portanto comprováveis, que revelam, no mínimo, o entusiasmo da família com a ação de milicianos, incluindo discursos na defesa desses grupos criminosos.

Se o comportamento Bolsonaros vai além das palavras elogiosas, da concessão de honrarias e de empregar parentes de milicianos, é uma questão a ser mais bem investigada.

No entanto, as “coincidências” e o cruzamento em várias situações entre os Bolsonaros e as milícias são inegáveis, além da  defesa que fazem, ou fizeram, da atuação desses grupos de foras da lei.

A relação abaixo mostra vários desses momentos todos comprovados.

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2003 – MAIO.  Os policiais militares Adriano da Nóbrega e Fabrício Queiroz (sim, eles mesmos), do mesmo batalhão, são acusados pelo homicídio de um técnico de refrigeração, morto durante uma operação policial na Cidade de Deus, no Rio.

 2003 – AGOSTO. Estava em debate na Câmara dos Deputados, em Brasília, a ação de um grupo de extermínio na Bahia, que cobrava entre R$ 50 e 100 para assassinar pessoas. O então deputado Jair Bolsonaro, defendu o grupo dizendo o seguinte: “Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro”.

2003 – OUTUBRO. Cinco meses após o homicídio pelo qual os dois PMs (Queiroz e Adriano) era acusados, o então deputado estadual pelo Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro, apresenta “moção de louvor” a Adriano Nóbrega. No texto da proposta, Flávio escreveu que Nóbrega trabalhava com “dedicação, brilhantismo e galhardia” e era “com sentimento de orgulho e satisfação”, que lhe prestava a homenagem.

2003 – DEZEMBRO. Quatro jovens são encontrados mortos no estacionamento de uma casa de shows na Baixada Fluminense. Um dos suspeitos na chamada “chacina da Via Show” foi o major PM Ronald Paulo Alves Pereira.

2004 – Janeiro. Adriano foi preso acusado de outro crime: a morte de um guardador de carros que. Pouco antes, rapaz havia denunciado um grupo de milicianos.

2004 – Março. Três meses após a “Chacina da Via Show”, Ronald Paulo Alves Pereira recebe homenagem da Assembleia do Rio de Janeiro, por iniciativa de Flávio Bolsonaro. Foi uma moção de “louvor e congratulações” pelos serviços prestados pelo militar.

2005 – AGOSTO. Flávio Bolsonaro volta a homenagear Adriano Nóbrega, agora com a mais alta condecoração da Assembleia Legislativo do Rio de Janeiro, a Medalha Tiradentes, Como ainda está preso, Adriano não pôde receber pessoalmente a comenda. Adriano e Ronald eram os principais alvos da Operação Intocáveis, de combate às milícias.

2005 – OUTUBRO.  Dois meses após a homenagem do filho, Jair Bolsonaro, em discurso na Câmara, defende Adriano Magalhães da Nóbrega, quatro dias após ele haver sido condenado no Tribunal de Júri a 19 e seis meses de prisão pela morte do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, de 24 anos. No discurso, Bolsonaro classificou-o como “brilhante oficial” e acusou a Anistia Internacional de “cobrar” a prisão de policiais militares no Brasil. “O Estado (Rio de Janeiro) que mais prende policiais é o Estado que está mais ao lado dos direitos humanos”, disse, atribuindo também a responsabilidade ao casal Rosinha (na época governadora do Rio) e Anthony Garotinho.

 2007 – FEVEREIRO. Flávio Bolsonaro discursa na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro: “Como bem disse o sr. Deputado Paulo Ramos, não se pode, simplesmente, estigmatizar as milícias, em especial os policiais envolvidos nesse novo tipo de policiamento, entre aspas. (…) A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior: os criminosos”.

 2008  –  JUNHO. Durante debate para a instalação da CPI das Milícias na Alerj, presidida por Marcelo Freixo (Psol), Flávio Bolsonaro, elogiou o trabalho dos milicianos: “Sempre que ouço relatos de pessoas que residem nessas comunidades, supostamente dominadas por milicianos, não raro é constatada a felicidade dessas pessoas que antes tinham que se submeter à escravidão, a uma imposição hedionda por parte dos traficantes, e que agora, pelo menos, dispõem dessa garantia, desse direito constitucional, que é a segurança pública”.

 2008  – DEZEMBRO. A CPI das Milícias é concluída, com o relatório final pedindo indiciamento de 266 pessoas, entre elas sete políticos, suspeitos de ligação com grupos paramilitares no Rio. Nesse mesmo ano, o relatório foi entregue à Câmara Federal. O então deputado Jair Bolsonaro discursou: “Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes. Existe miliciano que não tem nada a ver com ‘gatonet’, com venda de gás”. Disse que não se podia “generalizar” (a acusação contra as milícias), classificando de “covarde” o relatório e o presidente da CPI, Marcelo Freixo.

2010 – NOVEMBRO – Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, mulher de Adriano Nóbrega, é contratada para trabalhar no gabinete de Flávio Bolsonaro com salário acima de R$ 6 mil.

 2011  –  AGOSTO. A juíza Patrícia Acioli, conhecida por combater as milícias no Rio de Janeiro foi assassinada com 21 tiros, no dia 12, por dois homens, quando chegava em casa. O comentário de Flávio Bolsonaro no Twitter: “Que Deus tenha essa juíza, mas a forma absurda e gratuita com que ela humilhava policiais nas sessões contribuiu para ter muitos inimigos”.

 2015  –  JANEIRO. Daniela Barbosa Assumpção de Souza, juíza da Vara de Execuções Penais, sofre grave agressão ao fazer inspeção no Batalhão Especial Prisional, onde estavam presos policiais militares acusados de integrar uma milícia. Ela teve a blusa rasgada, perdeu óculos e sapatos. Disse Flávio Bolsonaro: “A juíza se dirigiu de forma desrespeitosa com alguns policiais, chamando de vagabundos e milicianos. (…) Acabou sendo expulsa lá de dentro por policiais que se revoltaram”.

2015 – MARÇO. A mãe do capitão Adriano, Raimunda Veras Magalhães, é nomeada assessora da liderança do Partido Progressista (PP), ao qual Flávio era filiado. Ela deixa o cargo em 31 de março de 2016, quando o deputado transfere-se para o PSC.

2016 – JUNHO. Raimunda é novamente contratada pela Assembleia Legislativa do Rio, agora no gabinete de Flávio Bolsonaro. Salário R$ 6,4 mil. (Segundo relatório do então Coaf ela depositou R$ 4,6 mil na conta de Fabrício Queiroz.)

 2018 – FEVEREIRO. Já candidato a presidente, em entrevista ao programa “Pânico”, rádio Jovem Pan, Jair Bolsonaro, ao responder como pretendia combates as milícias, afirmou: “Calma. Você tem que pensar. Tem gente que é favorável à milícia, porque é a maneira que eles têm de ser ver livre da violência. Naquela região que a milícia é paga, não tem violência. Não é só na região não, você vai para Madureira, naquele centro de Madureira, tem muito comércio, pequenos shoppings ali. Quem paga, em média, cinquenta merréis por mês, para alguém daquela área, não tem arrastão no shopping dele”.

 2018  – MARÇO, DIA 14. A vereadora Marielle Franco (Psol-RJ) e seu motorista Anderson Gomes são assassinados no Rio de Janeiro, provocando comoção mundial. As primeiras suspeitas apontam para a ação de milicianos, integrantes da organização “Escritório do Crime”. Dos 13 candidatos a presidente, apenas Jair Bolsonaro não manifestou pesar ou solidariedade às famílias pelas mortes. Um assessor disse que ele não falaria, pois a sua opinião seria “polêmica demais”.

 2018  – MARÇO. Depois em entrevista a um canal bolsonarista no Youtube, Bolsonaro justificou-se dizendo que devido ao “simbolismo” da vereadora qualquer depoimento seria “potencializado e distorcido” contra ele, por isso resguardaria o “direito de permanecer em silêncio”.

 2018 –  MARÇO. Dois dos filhos de Bolsonaro falam sobre o assassinato de Marielle e Anderson. Flávio chegou a escrever e seu Twitter que lamentava a morte de Marielle, e que mantinha “relação respeitosa” com a vereadora, mas depois apagou a postagem. Eduardo (deputado federal por São Paulo) preferiu criticar as suspeitas de que policiais militares poderiam estar envolvidos no crime: “Se você morrer seus assassinos serão tratados por suspeitos, salvo se você for do Psol, aí você coloca a culpa em quem você quiser, inclusive na PM”, escreveu.

 2018 – ABRIL. Flávio é o único deputado a votar contra a proposta de Marcelo Freixo (PSol) para a Alerj conceder a medalha Tiradentes em homenagem póstuma a Marielle Franco. A proposta foi votada no dia 13, e aprovada com a seguinte observação: “Com voto contrário do Deputado Flávio Bolsonaro”.

 2018 – SETEMBRO. A operação Quarto Elemento, coordenada pelo Ministério Público Estadual do Rio, deteve os irmãos PMs Alan e Alex Rodrigues de Oliveira, acusados de fazer parte de uma quadrilha especializada em extorsão de dinheiro e também de constituir, integrar e financiar organização criminosa. Ambos participavam das campanhas de Jair Bolsonaro e de seu filho Flávio (candidato eleito ao Senado). Na ocasião, Bolsonaro disse que a participação de agentes em sua campanha era “voluntária”.

 2018 – SETEMBRO. Na época, jornais informaram que a irmã dos PMs Alan e Alex, Valdenice de Oliveira Meliga, era assessora de Flávio e tesoureira do PSL no Rio. Salário: R$ 6,4 mil. Em 1º/10/2017, Flávio havia publicado uma foto em seu Instagram, ao lado dos dois irmãos PMs, com a seguinte legenda: “Parabéns Alan e Alex pelo aniversário, essa família é nota mil!!!”

 2018  – SETEMBRO. No total, a operação Quarto Elemento buscava mais de 40 suspeitos. Entre os presos estavam também outros três policiais: os PMs Leonardo Ferreira de Andrade e Carlos Menezes de Lima e o policial civil Bruno Duarte Pinho. Os três policiais haviam recebido da Assembleia Legislativa do Rio “moção de louvor e congratulações” por “serviços prestados à sociedade”, proposta de Flávio Bolsonaro.

 2018  – OUTUBRO. Os então candidatos a deputado Rodrigo Amorim (estadual) Daniel Silveira (federal), em ato de campanha, rasgam uma placa de rua em homenagem a Marielle. Os dois são do PSL-RJ e foram eleitos com o apoio entusiasmado da família Bolsonaro. Wilson Witzel (PSC), então candidato (eleito) a governador do Rio, estava no ato e também comemorou a destruição da homenagem. Amorim mandou emoldurar um pedaço da placa afixando-a em seu gabinete

 2018 – NOVEMBRO. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais, a mãe (Raimunda) e a mulher (Danielle) do capitão Adriano são exoneradas do gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

2019  – JANEIRO. Deflagrada a operação Os Intocáveis, na qual são presos e denunciados pelo menos 13 suspeitos de participarem de uma milícia que age na zona Oeste do Rio de Janeiro. Entre eles estavam o major da PM Ronald Paulo Alves Pereira, que foi preso, e o ex-capitão do Bope, Adriano Magalhães da Nóbrega (que fugiria). Ronald é considerado um dos líderes Escritório do Crime, organização especializada em assassinatos, suspeita de estar envolvida na morte de Marielle e de seu motorista Anderson.

2019  – FEVEREIRO. A revista piauí publica levantamento, com base nos registros da Assembleia Legislativa do Rio, mostrando que, entre 2003 e 2018, o então deputado Flávio Bolsonaro aprovou moções e medalhas para 19 policiais militares, três policiais civis e um tenente-coronel da reserva do Exército, que são réus na Justiça ou foram condenados por crimes diversos, que vão do homicídio à lavagem de dinheiro, organização criminosa ou fraudes em licitações. Entre as homenagens concedidas por Flávio há as chamadas “moções” (usadas para expressar louvor) – e a Medalhas Tiradentes, a mais alta condecoração da Alerj.

2019 – MARÇO. Poucos dias antes de completar um ano da morte de Marielle e Anderson, a polícia civil prende o sargento reformado da PM Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio Vieira de Queiroz, suspeitos de serem os executores do duplo assassinato. Segundo o Ministério Público, Lessa era muito vinculado ao Rio das Pedras, local de atuação do grupo de milicianos do Escritório do Crime. Ele mora no Rio, no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro. O delegado Giniton Lages, que coordenou a operação, informou que o filho mais novo de Bolsonaro namorou a filha de Lessa.

2019 – MARÇO. A polícia também descobriu que Ronnie Lessa rastreava, pela internet, defensores de direitos humanos, com “singular obsessão” pelo deputado federal Marcelo Freixo (Psol). Quando deputado estadual, Freixo foi responsável pela CPI das Milícias, na Assembleia Legislativa do Rio, que começou a levantar o véu sobre esses grupos de bandidos e suas possíveis ligações com políticos.

2020 – FEVEREIRO. O foragido capitão Adriano é morto em Esplanada (BA) em uma operação cujas circunstâncias ainda não estão bem explicadas.

Esses são os fatos até agora.

Para concluir, duas perguntas:

QUEM MANDOU MATAR MARIELLE E ANDERSON?
POR QUÊ?

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> Existe outro post neste blog com essa cronologia. Esta postagem atualiza e reorganiza os dados.