Dois de agosto fora a data escolhida. Dois fatos motivaram-lhe a escolha: primeiro, aquela era a data em que os franciscanos comemoram o Perdão de Assis; segundo, no dia seguinte completaria quarenta e oito anos. Por um método complexo de cálculo com as cartas do Tarô concluíra que aquela era uma data-limite para a sua vida. Era algo assim como se, cruzada aquela fronteira, digo, dos quarenta e oito anos, não lhe fosse mais dada uma segunda chance. Aquele era o momento.

Então decidiu. Naquela manhã vestiu sua túnica andina, a mesma que vestia cada vez que se preparava para iniciar suas orações diárias – o rito era necessário, pois ia falar de coisas sagradas -, acendeu uma vela e proferiu uma oração implorando a necessária inspiração do Divino Espírito Santo, e pôs-se diante do computador para o relato do feito.

Sempre fora especialmente fascinado por figuras que tiveram sua vida totalmente transformada – virada pelo avesso, se poderia dizer -, pelo processo conhecido por Metanóia. Causava-lhe espécie matutar sobre Paulo, Agostinho e Teresa dÁvila, três agraciados pela total mudança de rumo a certa altura de suas vidas. Metanóia tem muitas acepções, é um vocábulo tão rico de sentido quanto de possibilidades, mas, resumidamente, significa mudança de rumo. Pois era nessa mudança de rumo que sempre pensava.

A idéia foi se sedimentando em sua mente com o passar dos anos, tornando-se, por fim, quase uma obsessão. Era algo assim como um aguilhão que, fincado à sua carne, lhe provocasse dores intensas e intermitentes, não lhe permitindo viver um minuto na vida sem que fosse lembrado de que já não dispunha mais de tanto tempo, urgindo que fizesse a grande opção. E ele tinha consciência de que aquela não seria apenas mais uma opção; não, aquela seria a opção, seria o Sim, o grande Sim que um homem tem que dizer uma vez à vida.

O marco do doloroso processo por que passava foi o encontro com o Demônio Meridiano. Desde que este lhe assomara à porta, há nove anos, instando a que tomasse uma decisão, ele não mais tivera um minuto de paz na vida. Sabia que não podia mais brincar de viver. Ah!, o Demônio Meridiano, figura assustadora e inclemente. Era preciso exorcizá-lo, banindo para longe sua maléfica influência e livrando-se definitivamente dos seus tantalizantes grilhões, a mornidão (Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca. Ap 3,16).

Então faria um pacto. Sabia de pessoas que fizeram um pacto com o Demônio. Ele, ao contrário, faria um pacto com Deus. Mas era preciso prudência. A situação exigia, antes de qualquer coisa, que tivesse claro o que queria. Um pacto da natureza do que estava na iminência de fazer não se celebrava levianamente. Não se brinca com o Sagrado impunemente. Por isso a clareza do ato é indispensável. Mas ele estava preparado. Passara anos se preparando para este momento, passando por algo assim como uma espécie de processo de gradativa purgação. Fora provado no cadinho da tenebrosa noite escura da alma. Eis que chegara o momento de emergir das densas brumas em que se vira, até então, envolto.

Assim, convicto de que nunca se tem total garantia, motivo pelo qual qualquer opção é sempre uma aposta, ele se preparou para o momento da grande aposta. Assinalaria a celebração do pacto assistindo a uma missa e comungando no convento dos capuchinhos, em reverência ao Pobrezinho de Assis, inspiração maior de seu atribulado sadhana.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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