Ó almas obstinadas! dai-me um homem que contemple (estas verdades), sem imaginar nada de carnal. Dai-me quem veja que unicamente o Uno perfeito é o princípio de todas as coisas que possuem unidade, nelas planificando ou não, essa unidade. Dai-me um homem que veja, sem levantar objeções, sem se dar ar de ver o que não vê. Dai-me um homem que resista ao fluxo de sensações carnais e aos golpes que elas infligem em sua alma. Alguém que resista aos costumes dos homens, aos elogios humanos, que chore no leito as suas culpas, que se dedique a reformar seu espírito, sem apego às vaidades, sem busca de ilusões.

Santo Agostinho

[A verdadeira religião; O cuidado devido aos mortos. Trad. de Nair de Assis Oliveira. – São Paulo: Paulus, 2002, p. 89. (Patrística; 19).]

Gostaria de tratar aqui de um tema que muito me agrada e muito me tem feito refletir: as possibilidades e limites da razão no que toca à apreensão do Sagrado. Valho-me, para esta reflexão, da quinta parte do livro de Santo Agostinho, “A verdadeira religião”. Santo Agostinho atribuiu a essa parte do livro um título que me parece, a um só tempo, instigador e provocativo: “A salvação pela razão”.   

Logo no início, o bispo de Hipona propõe a questão com as seguintes palavras: “Vejamos, agora, até onde pode ir a razão na sua ascensão do visível ao invisível, do temporal ao eterno” (p.77). Agostinho parte da contemplação da natureza através das impressões que nos chegam através dos sentidos do corpo. Os sentidos, porém, têm algumas limitações que lhes são próprias, não sendo possível uma apreensão absolutamente verdadeira da realidade exatamente devido a tais limitações. Propõe como exemplo, para ilustrar o seu argumento, um objeto imerso na água, o qual é percebido pela visão como se estivesse quebrado ou torto. A percepção em si não está incorreta, pois é próprio da visão assim perceber um objeto nessas condições, ou seja, imerso na água. 

O homem, porém, é dotado de uma mente racional que lhe permite julgar aquilo que percebe, o que o torna diferente dos animais. Caberá à razão julgar se o que percebe através da visão e dos demais sentidos é ou não uma expressão da verdade.

Esse raciocínio parte do pressuposto de que existiria algo que poderia ser tido como a Verdade. Na perspectiva de santo Agostinho, a Verdade é o Uno, do qual tudo provém. Cabe ao homem envidar os esforços necessários à apreensão do Uno. Para tanto, necessário se faz que a mente atinja um estado de repouso, de quietude, em que as fantasias próprias da imaginação não mais a agitem. “Se as considerações acima perturbam o olhar de vossa mente”, recomenda Agostinho, “aquietai-vos. Não luteis senão contra o mau hábito das imaginações corpóreas. Vencei-as e tudo mais será vencido” (p.90).

Na sexta parte do livro, santo Agostinho resume o procedimento necessário para atingir o almejado repouso, que facultará à mente chegar à transcendência, condição para que possa aceder à Verdade: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão” (p.98).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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