mitologia_dos_orixas_1231789573pUm dia, em terras africanas dos povos iorubás, um mensageiro chamado Exu andava de aldeia em aldeia à procura de solução para terríveis problemas que na ocasião afligiam a todos, tanto os homens como os orixás. Conta o mito que Exu foi aconselhado a ouvir do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a Terra com o homem. Histórias que falassem da ventura e do sofrimento, das lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das dificuldades na luta pela manutenção da saúde contra os ataques da doença e da morte. Todas as narrativas a respeito dos fatos do cotidiano, por menos importantes que pudessem parecer, tinham que ser devidamente consideradas. Exu deveria estar atento também aos relatos sobre as providências tomadas e as oferendas feitas aos deuses para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Assim ele fez, reunindo 301 histórias, o que significa, de acordo com o sistema de enumeração dos antigos iorubás, que Exu juntou um número incontável de histórias.

Reginaldo Prandi

[Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17]

Sempre me despertou um interesse todo especial a cosmologia do Candomblé. Para quem teve algum dia a oportunidade de se debruçar sobre essa cosmologia, terá chegado à conclusão de que esse sistema religioso, trazido da África para o Brasil pelos negros aqui aportados como escravos, guarda em si uma  extrema beleza e complexidade. Tanto um quanto outro aspectos do Candomblé estão expressos particularmente nos mitos, que, por sua vez, conferem sustentação aos ritos.

Um mito, é necessário que se diga, é muito mais que uma lenda. O mito se propõe contar uma história que fala das origens, dos primórdios da humanidade e da vida na Terra. Através do mito se tem acesso a uma série de mistérios de outra forma inexplicáveis. Originalmente transmitidos pela tradição oral, somente tardiamente os mitos seriam compilados sob a forma escrita. No caso dos povos iorubás, de onde provém o Candomblé, os relatos míticos têm um valor muito especial, pois é sobre eles que se assenta toda sua tradição.

No Brasil, a tentativa de compilar os mitos dos Orixás, os deuses do Candomblé, remonta a 1928, com Agenor Miranda Rocha. No entanto, foram apenas tentativas iniciais e ainda incompletas. Em 2001, porém, um grande e auspicioso passo foi dado neste sentido, com a publicação do livro Mitologia dos Orixás, de autoria de Reginaldo Prandi, com ilustrações de Pedro Rafael.

O sociólogo da USP Reginaldo Prandi é hoje, incontestavelmente, um dos maiores e mais abalizados estudiosos das tradições religiosas trazidas da África para o Brasil, com vários estudos publicados sobre o tema. Seu livro Mitologia dos Orixás é que o de melhor se tem hoje sobre a tradição mítica dos iorubás. Para quem quer conhecer um pouco da complexa cosmologia do Candomblé, a leitura dessa obra será de inestimável valor, além do deleite proporcionado pela narração dos mitos.

Dos 301 relatos apresentados por Reginaldo Prandi, transcreverei aqui o que considero um dos mais belos, que explica de forma exemplar por que um dia todo ser humano tem que morrer. Ei-lo:

Nanã fornece a lama para a modelagem do homem

Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é Nanã. Oxalá criou o homem, o modelou no barro. Com o sopro de Olorum ele caminhou. Com a ajuda dos orixás povoou a Terra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à terra, voltar à natureza de Nanã Burucu. Nanã deu a matéria no começo mas quer de volta no final tudo que é seu (p. 196).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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