E entretanto, Jesus chama-me, do sacrário, e eu fujo, fujo como todos os cristãos do mundo. Oh que coração, que coração! Se ao menos conseguisse estar unido a Jesus com jaculatórias mais frequentes! Prometi-lho mil vezes e nunca o fiz. Portanto, é preciso fazê-lo, e com a ajuda de Deus, fá-lo-ei. Senhor, se quiseres, podes purificar-me (Lc 5,12).

João XXIII

[João XXII. Diário da Alma – ao cuidado de Loris L. Capovilla. Trad. Margarida Maria Osório Gonçalves e A. Maia da Rocha. Apelação, Portugal: Paulus, 2000, p. 50]

Em 1953, durante um retiro espiritual com os bispos da Província de Trivéneta, realizado no Seminário de Veneza entre os dias 15 e 21 de maio, relatava o então cardeal Angelo Giuseppe Roncalli, futuro papa João XXIII: Durante estes dias, li São Gregório e São Bernardo, ambos preocupados com a vida interior do pastor, que não deve sofrer com os cuidados materiais exteriores. A minha jornada deve ser sempre uma oração; a oração é o meu alimento  (p. 328).

Lendo o Diário da Alma, de João XXIII, fica claro o quanto este homem, que se tornaria conhecido como o papa bom, era voltado para a oração. Tudo no Diário sabe a interiorização e recolhimento. Sua fé no poder da oração era incomensurável. Ao longo do texto ele várias vezes se refere à repetição de jaculatórias. Essa é uma palavra de uso comum e reiterado nas anotações de João XXIII.   

O que é uma jaculatória? O Dicionário de Termos da Fé oferece a seguinte definição para o vocábulo: Jaculatória: (do latim jaculari, lançar um dardo). Oração jaculatória, breve e vigoroso impulso da alma para Deus, numa oração interna ou externa de algumas palavras. Jaculatória é, em geral, uma frase curta que é repetida diversas vezes. É o equivalente do mantra budista e hinduísta. 

No domingo, 4 de setembro de 1898, anotava o futuro papa: Eis aquilo de que necessito: maior recolhimento na igreja quando se celebram as cerimônias públicas; recordar-me de Maria com maior frequência; nunca deixar de fazer bem a visita; e sobretudo, jaculatórias, especialmente aquelas com que posso fazer juntamente um acto de humildade.Ó Maria (p. 58). E três dias depois, em 7 de setembro: Preciso ainda de jaculatórias, sobretudo enquanto estudo, elas dar-me-ão luz nas dificuldades com que muitas vezes me deparo, pela pobreza do meu cérebro, e infundir-me-ão mais coragem (p.59).

A prática da repetição de jaculatórias traz muitos benefícios, não sendo o menor deles a facilitação do recolhimento e da interiorização. Parece-me que era especialmente movido por este objetivo que o papa bom se valia das jaculatórias. Na quinta-feira, 8 de setembro de 1898, anotava em seu Diário da Alma: Todavia, recuperemos a calma; recolhimento, com jaculatórias. Senhor, tem misericórdia de mim, o maior pecador (p.60).

Mas a jaculatória tem também o poder de unir aquele que a repete àquele a quem se dirige a recitação. É com este objetivo, aliás, que os devotos de Krishna, no hinduísmo, repetem o mantra Hare Krishna Hare Krishna, Krishna Krishna Hare Hare, Hare Rama Hare Rama, Rama Rama Hare Hare, pois, segundo os adeptos, a  recitação reiterada dessas palavras os mantêm constantemente em consciência de Krishna.

Na mesma perspectiva, João XXIII encontrou nas jaculatórias uma forma eficaz de se manter unido ao seu Senhor. Durante o retiro de férias realizado em agosto de 1903, anotou: Quanto a coisas práticas, prometo dar atenção muito especial a três coisas: exame particular que, como de costume, terá por objeto o meu comportamento nas orações e exercícios de piedade; ofício divino, rezado no lugar e tempo oportunos, com grande reverência e suma atenção; visita ao Santíssimo Sacramento, com infindas jaculatórias e actos de amor para com ele durante o dia (p. 174).

Tenho uma predileção muito particular pela repetição de jaculatórias, prática que adotei e tenho mantido há mais de vinte anos. É uma técnica muito simples, que tem me ajudado a me sentir mais centrado, mais inteiro e mais consciente. Ao mesmo tempo, sinto-me, de alguma forma, unido aos Mestres a quem dirijo as jaculatórias. Dentre as muitas que eu poderia citar aqui, gostaria de mencionar uma pela qual tenho especial predileção, e que elencaria como uma das mais poderosas de quantas foram consagradas ao longo dos séculos pela tradição cristã. Encontra-se em Lucas 18, 38: Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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