Uma vida é feita de lembranças e fragmentos. Diante da tela do computador à espera da indispensável inspiração para o texto que postarei logo mais nesta segunda-feira, uma multidão de temas precipita-se em minha mente clamando por fazer-se palavra. Sobre que assunto escrever, do que falar, o que dizer neste começo de semana? Eu deveria escrever, a exemplo do que tenho feito desde que este blog foi criado, sobre o nosso jeito brasileiro de ser. Não sinto, porém, vontade de desenvolver qualquer assunto dentro desta temática. Angústia.

Mas escrever é preciso. Clarice Lispector disse, certa vez, que escrever salva. E salva mesmo. Disso não tenho dúvidas. É por isso que escrevo, para me salvar de mim mesmo. Mas nem sempre o assunto, quando o tema é predeterminado, está à mão. O paradoxo, porém, é que às vezes o infinito universo de possibilidades da escrita é, exatamente, o que gera a paralisação. Não são raros os escritores que reclamam da angústia diante da folha em branco ou, como se tornou mais comum nos últimos tempos, da tela do computador.

Pois eis-me aqui, nesta noite de domingo – Ah!, as noites de domingo, como são vazias e chatas as noites de domingo! – em busca do assunto para a postagem da segunda-feira. Como nada me ocorresse, porém, entre uma e outra xícara de café – onde descarrego minha angústia -, restou-me inventar, criar um novo tema para as segundas-feiras, de forma a alterná-lo com aquele que já se tornou habitual, para o caso de experimentar essa falta de assunto que experimento esta noite.

Ocorre-me que comecei falando de lembranças. Por que usei exatamente esta palavra para iniciar o texto? Bem, o fato é que as tardes-noite de domingo sempre me trazem lembranças. Geralmente encontro formas de despistar tais lembranças, porque elas nem sempre me fazem bem. São, quase sempre, lembranças da infância e adolescência, dos meus primeiros dezoito anos, vividos em Massapê.

Pois me ocorreu de, enquanto me postava diante do computador, vir à mente a lembrança de Dona Maria Zumba. Não sei de onde saiu este sobrenome tão esquisito, mas tudo que posso afirmar é que não lhe agradava ser tratada assim. O seu nome, afirmava enfática, era Maria Vasconcelos. Mas o fato é que todos na cidade a conheciam por Maria Zumba.

Eu tinha um carinho muito especial por Dona Maria Zumba. Minha amizade com ela se deveu às suas idas quase diárias ao comércio do papai, de quem era freguesa. Já idosa, não podendo mais se locomover, teve que recorrer a um vizinho para ir ao comércio do papai comprar os víveres necessários para o dia-a-dia.

Foi nessa época que comecei a frequentar a casa de Dona Maria Zumba. Morava num casebre no Bairro Nossa Senhora de Fátima, em local bem afastado. Viviam ela, uma outra mulher idosa, também solteira, e gatos, muitos gatos. Geralmente uma vez por semana, ou a cada quinze dias, eu pedia à minha mãe café, arroz, açúcar ou alguns outros gêneros de primeira necessidade, fazia um pacote e seguia de bicicleta para a casa daquelas anciãs esquecidas pelo mundo.

Impressionava-me profundamente a solidão daquelas duas mulheres, já idosas e ambas com dificuldade de locomoção, tendo por companhia apenas os gatos. Quando lá chegava, recordo-me bem, era uma festa. Dona Maria erguia-se com dificuldade da cadeira para me abraçar, proferindo sempre as mesmas palavras: “É por isso que a tarde tá tão bonita! É o Vasconcelinho que veio visitar a gente!”

Demorava-me por lá algum tempo a conversar amenidades e, quando o sol declinava e começava a escurecer, pegava a bicicleta e me encaminhava de volta para casa. Na hora da despedida havia sempre a inevitável pergunta sobre quando eu voltaria a visitá-las novamente.

Ao escrever este texto, tenho nítida diante de mim a imagem e as palavras de Dona Maria Zumba. Supondo que exista uma alma que sobreviva ao corpo, não raras vezes me ponho a matutar se hoje, em outra dimensão, essas pessoas que me transmitiram tanta ternura, tanta pureza e bondade, intercedem por mim. Caso isso seja possível, tenho certeza de que, neste momento, Dona Maria Zumba, olhando lá de cima para mim com muita ternura, pensa: “Pois não é que o Vasconcelinho ainda se lembra de mim depois de tanto tempo?”

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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