No mínimo um tipo estranho, era o que dele se poderia dizer. Uma dessas pessoas para quem tudo na vida tem um sentido. Por causa disso, certa vez, ao participar de uma palestra, fora-lhe imputada a pecha de tipo medieval. Sim, tipo medieval. Por acreditar que não há acaso, mas apenas necessidade, deixava-se levar mais ou menos aleatoriamente pelos fatos.

Mas lia os sinais. Sim, muito cedo na vida ainda aprendera a ler os sinais. Ou, pelo menos, o que supunha fossem sinais. Parecia farejar com o corpo. Sabia onde devia estar pelas sensações experimentadas no próprio corpo. Seu corpo era algo assim como um pêndulo oscilando entre estados de bem-estar e mal-estar. Uma ou outra sensação dizia-lhe quando e onde devia permanecer.

O necessário sempre acontece, pensava. E, por isso, deixava-se conduzir lendo os tais sinais, que eram como que setas que lhe indicavam o caminho por onde devia trafegar. Foi assim, por exemplo, quando decidiu escrever. Aconteceu durante uma peregrinação à Terra Santa. Em Jericó, sentado sobre uma pedra entre as ruínas à sombra de uma árvore, que o fez lembrar a figura bíblica de Zaqueu, um colega de grupo aproximou-se e, observando-o enquanto fazia anotações, exclamou: O escriba da corte! Naquele momento ele acreditou que era, de fato, um escriba, não sabia exatamente de que corte, mas, enfim, um escriba.

Passaram-se dois anos. Então, decidiu que era chegado o momento de começar a exercitar o ofício de escriba. Foi num sábado pela manhã. Despertou com a idéia: escreveria pequenos textos sem um plano prévio. Apenas partiria de uma idéia inicial e se deixaria guiar ao sabor da inspiração do momento. Começou a ponderar sobre os possíveis títulos com que reuniria os textos. Lembrou-se, então, do episódio de Jericó.

Fiat lux! Um lampejo brilhou em sua mente. O título estava ali, com todas as palavras: O baú do escriba. Que belo título, pensou, além do que recende a coisas de antanho, a mistério, a coisas guardadas. Mais tarde, ainda na manhã daquele sábado, ao sair para a rua, de repente, aconteceu-lhe um fato insólito. Bem, não tão insólito, pois que ele há muito já se habituara a fatos daquela natureza.

Acontece que se postara por alguns momentos encostado a uma parede numa das praças da cidade quando eis que passa, diante de si, um homem com uma criança nos braços e outra um pouco maior que segue adiante a passos rápidos. O homem, agitado e em tom visivelmente irritado, grita para a criança que segue à sua frente: Zaqueu, volta aqui Zaqueu! Pronto, foi o suficiente. Não restava mais dúvida. Ele devia mesmo dar trela ao projeto de começar a escrever os textos para O baú do escriba. Não era sobre o episódio de Jericó que ele havia pensado escrever inicialmente? Ele não tinha rememorado a figura de Zaqueu? E não estava ali, bem à sua frente, um Zaqueu, logo diante dele, que nunca antes conhecera alguém com este nome a não ser o Zaqueu bíblico?

Alguns dias depois, na quarta-feira, para ser mais exato, o que faltava ao título para ficar completo foi-lhe revelado. Tratava-se do dono do baú. Pois eis que assim de repente, num átimo, ele se lembrou de Artaban. Sim, sim, claro, Artaban, o Velho Sábio, a figura arquetípica com quem dialogara durante tantos anos. Lembrou que havia até livros em que tinha escrito o nome desta figura. Era como se Artaban fosse para ele uma espécie de alter ego. Então tudo estava posto para que começasse a escrever. Os textos seriam englobados num conjunto intitulado O baú do escriba Artaban. Depois que finalizou o título, congratulou-se consigo mesmo pelo feito. Aquele era um homem fadado a viver os sinais.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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