205154Era, pois, sábado, sendo ainda de noite. Ele ia em procura das coisas de Deus e de suas mensagens. E, quando chegou ao lado do cerrito, no lugar denominado Tepeyac, já estava amanhecendo. Ele escutou um cântico no alto cerrito: como se diversos pássaros lindos estivessem cantando e se revezando em seus cantares, como se o cerro lhes respondesse. Seu canto era muito alegre e muito delicioso, melhor do que o do coyotolol ou o do tzinizcan ou o de outros lindos pássaros que cantam. Ficou parado, de pé, João Diego, e falou consigo mesmo: “Porventura eu o mereço? Sou eu digno de estar ouvindo isso? Não será apenas um sonho? Não estarei eu vendo apenas em sonhos? Onde será que estou? Talvez lá onde nos ensinaram nossos antepassados, os anciãos, nossos avós? Lá na Terra da Flor, na Terra da nossa carne? Talvez lá dentro do céu”

Clodomiro L. Siller Acuña

[Acuña, Clodomiro L. Siller. Para compreender a mensagem de Guadalupe. Tradução de Georges I. Maissiat; revisão de Iranildo B. Lopes. – São Paulo: Paulus, 1995, p. 20.]

No livro Para compreender a mensagem de Maria de Guadalupe, Clodomiro L. Siller Acuña parte do texto original escrito no idioma náuatle, intitulado Nican Mopohua, para apresentar a história das aparições de Nossa Senhora de Guadalupe ao índio João Diego. O livro é dividido em duas partes: na primeira, o autor apresenta a tradução do texto original na íntegra; na segunda, tece diversos comentários sobre o texto. O Nican Mopohua começa com as seguintes palavras:

Aqui se narra, progressivamente, de que maneira há pouco tempo apareceu milagrosamente a sempre Virgem Santa Maria, Mãe de Deus, nossa Rainha, lá no Tepeyac, também denominado Guadalupe. Primeiro ela se mostrou a um pobre digno chamado João Diego; mais tarde sua formosa imagem apareceu na presença do novo bispo Dom Frei João de Zumárraga. Também se narram todas as coisas admiráveis que ela fez (p. 19).

Concisamente, é a seguinte a história da aparição de Nossa Senhora de Guadalupe. Numa manhã de sábado, dia 9 de dezembro de 1531, Nossa Senhora aparece a João Diego (1474-1548), indígena de Cuautitlán, há pouco convertido e batizado, enquanto este se dirigia à igreja de Santa Cruz de Tlatelolco para assistir às aulas de catecismo. A Virgem pede-lhe que solicite ao bispo que mande construir naquele local, chamado Tepeyac, uma ermida para reverenciá-la. Quando João Diego transmite a mensagem ao bispo, este duvida. Pede-lhe, então, um sinal de que foi mesmo a Virgem Maria quem lhe fez o pedido.

Nossa Senhora aparece novamente ao indígena, ordenando-lhe que colha algumas flores na colina próxima e as leve ao bispo. João Diego, obedecendo à ordem da Virgem, sobe a colina e colhe várias rosas de Castilha, desabrochadas fora da estação, envolvendo-as em sua tilma, a rústica manta usada por ele. Chegando ao palácio episcopal, no exato momento em que desenrola a tilma, deixando cair as flores diante do bispo, todos observam, estupefatos, o surgimento de uma bela imagem da Virgem estampada na manta. Diante da maravilha, o bispo se convence da veracidade das palavras de João Diego.

Eis o belo trecho que narra o momento em que, ao ouvir um chilrear de pássaros, João Diego resolve seguir em direção ao local de onde provinham os cantos maviosos das aves:  

Então ele se atreveu a ir até onde o chamavam. Em nada se alterou seu coração, nem teve qualquer temor; pelo contrário, sentia-se muito contente, muito alegre. Começou a subir o cerrito, e viu uma senhora que estava ali de pé e que o chamou para que se aproximasse mais perto dela. Quando chegou à sua presença, ele se admirou muito da sua perfeita formosura. Sua roupa parecia um sol e lançava raios de luz.

E a rocha e os penhascos em que ela estava de pé, ao receberem como flechas os raios e o esplendor, pareciam ser feitos de esmeraldas preciosas, pareciam jóias; a terra cintilava como os resplendores do arco-íris. Os mesquites, nopales e as plantas que por ali crescem pareciam ser feitas da plumagem do quetzal; e suas hastes, de turquesa; os ramos, a folhagem e até mesmo os espinhos brilhavam como ouro.

Ele se inclinou diante dela, escutando seu pensamento e sua palavra sumamente recriadora e muito enobrecedora, como que atraente e procurando amor (p. 21).

Para mim, o diálogo da Virgem com João Diego é um dos mais belos – eu arriscaria dizer, o mais belo – episódios de toda a história das aparições marianas.

Ela lhe disse: “Escuta, filho meu o mais desamparado, digno João: para onde 327392248_aa21590275está indo?” (p. 21).

Numa outra aparição, como João se mostrasse abatido devido à doença de seu tio, já às portas da morte, ouve da Virgem as palavras mais confortadoras que alguém poderia almejar ouvir:

Escuta, e assenta bem em teu coração, filho meu o mais desamparado: o que te assusta e te abate é nada, não se perturbe a tua face nem o teu coração, não tenhas medo dessa enfermidade nem de qualquer outra enfermidade ou de algo que te angustie. Porventura não sou eu, eu aqui, a tua mãe? Não estás à minha sombra e sob a minha proteção? Porventura não sou eu a tua fonte de vida? Porventura não estás no regaço do meu manto, ali onde eu cruzo os meus braços? Que mais te faz falta? Que nada mais te aflija nem te cause amarguras! Não te aflija a enfermidade do teu tio. Pois ele não irá morrer disso que agora tem. Fica seguro, em teu coração, de que ele já sarou (p. 28). 

Nossa senhora de Guadalupe é tanto a Padroeira do México quanto da América Latina. O livro de Clodomiro L. Siller Acuña constitui documento valiosíssimo, pois oferece ao leitor e ao estudioso da mariologia a oportunidade de ter um contato direto com aquela que é considerada a primeira narrativa das aparições de Guadalupe.

Para mim, em particular, este é um livro muito especial por todas as bênçãos que me foram conferidas pela Virgem de Guadalupe, as quais atribuo à sua leitura. Teria muito o que falar sobre o assunto, mas fica para outra ocasião.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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