8532621546E enquanto “rezava com fervor”, do crucifixo pintado saiu uma voz que atraiu a atenção e assustou o jovem: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai, pois, e restaura-a!” Trêmulo e atônito, o jovem respondeu: “Com muito prazer o farei, Senhor”. Entendeu que Cristo falava daquela igreja de São Damião que, por ser muito antiga, ameaçava ruir de um momento para outro. Estas palavras encheram-no de tanta alegria e tão iluminado ficou, que sentiu verdadeiramente em sua alma a presença de Cristo crucificado que lhe havia falado”.

Gianmaria Polidoro

[Polidoro, Gianmaria. Francisco. Tradução de Frei Ary E. Pintarelli, ofm. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 20.]

Todo o mundo católico iniciou ontem a celebração dos festejos de São Francisco de Assis. Aqui no Ceará este é um dos santos mais reverenciados, sendo a cidade de Canindé o grande centro de peregrinação franciscana. Aproveitando o ensejo, pretendo, no decorrer dos próximos dias, escrever sobre alguns aspectos do franciscanismo.

Em 1999 a Editora Vozes publicou um dos mais belos livros que tive oportunidade de ler sobre a vida de São Francisco. Trata-se do livro Francisco escrito pelo frade franciscano Gianmaria Polidoro. Sua beleza se deve tanto ao texto, de leitura muito agradável, quanto às ilustrações. Durante sua leitura, me fiz companheiro de peregrinação do autor pelas ruelas medievais da bucólica cidade de Assis.

Um dos trechos do livro de que mais gosto, a cuja leitura frequentemente retorno, é aquele em que o autor narra a conversão de São Francisco ocorrida diante do Crucifixo da igreja de São Damião.

“Naquele dia”, escreve Gianmaria Polidoro, “encontrando-se nos arredores da igreja, sentiu-se convidado a entrar. Ajoelhou-se com devoção diante da cruz e rezou intensamente”. Segue-se a Oração recitada por Francisco: “Ó glorioso Deus altíssimo, iluminai as trevas do meu coração. Concedei-me uma fé íntegra, uma esperança firme, uma caridade perfeita, uma humildade profunda, um reto sentir e conhecer, para que eu possa cumprir os vossos mandamentos. Amém” “Esta oração”, diz o autor, “tirada dos escritos de São Francisco, talvez nos possa dizer algo do encontro com Deus na penumbra de São Damião. Iluminai as trevas do meu coração é o pedido insistente de quem sabe que tem uma porta aberta diante de si, mas ainda não consegue divisá-la por causa da escuridão da vida” (p. 20).

O último trecho da narrativa de Polidoro sempre me impressionou muito. A

São Francisco diante do Crucifixo de São Damião. Pintura de Giotto

São Francisco diante do Crucifixo de São Damião. Pintura de Giotto

força que ele imprime às palavras Iluminai as trevas do meu coração, com o comentário feito em seguida, transmite bem o caráter obscuro de quem tateia pelos caminhos da fé. Este é um dos momentos em que me sinto mais próximo do Pobrezinho de Assis. Ao ler o relato, me coloco na pele de Francisco, e fico a pensar sobre o quanto deve ter sido difícil para ele este momento. Ponho-me a imaginar, igualmente, o estupendo júbilo que deve ter tomado conta de todo o seu ser ao ser agraciado com as palavras emanadas do próprio crucifixo. O caminho da fé é assim: é preciso ir ao fundo de si mesmo, descer à mais profunda escuridão, para que, enfim, a luz se faça. Mas este é um caminho para poucos. Parece-me que a conversão não é apenas uma questão de querer nem de poder, embora um e outro sejam necessários, mas talvez se deva atribuí-la, muito mais, à graça. E quanto a isso, São Francisco foi um dos maiores agraciados da história do cristianismo. E porque soube o que é a escuridão da fé, quem quer que se aventure por essa difícil e tortuosa trilha pode ter a certeza de que encontrará nele um guia e Mestre seguro, que não permitirá a um buscador sincero que se perca no caminho.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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