Édipo e a esfinge. Gustave Moreau (1826-1898)

Édipo e a esfinge. Gustave Moreau (1826-1898)

Ele voltou. Esta manhã ele resolveu, como se costuma dizer, dar o ar de sua graça.  Esta madrugada, para ser mais preciso. Duas horas da madrugada, hora em que o silêncio é tão intenso que chega a doer, disso sabem os insones.  Pois ele  andou rondando por aqui em torno da minha mesa por volta das duas horas. “Porque”, disse-me ele,”desistir também é uma virtude, até mesmo uma arte. Por isso, às vezes é preciso desistir. É preciso abdicar. Quando a gente se dá conta de que a suposta palavra que, enfim, salvaria e nos resgataria da tentação da grande danação, não existe, a saída é desistir. Ou se deixar levar”.

Ah!, esses insondáveis pensamentos que nos assolam vez em quando… Pois é. Pois é é quando nada mais resta a dizer e percebe-se que a conversa chegou ao fim, e que qualquer tentativa de diálogo será vã. Então apela-se para o pois é. Ele andou lendo aquelas velhas ficções, e por isso andou tendo uns acessos de sensações clariceanas. Mas claricear, principalmente de madrugada, não é para qualquer um, isso ele o sabe muito bem. Mas do que gostaria mesmo era de claricear, escrevendo assim ao sabor do momento, se deixando levar pelo toque suave dos dedos no teclado, seguindo o ritmo natural que as próprias palavras… assim, assim, interrompendo quando a palavra seguinte não viesse.

Artaban, Artaban, para onde segues com teus ritos e mitos? Teus santos estão todos surdos, e tuas velas todas apagadas. Foi-se o tempo dos grandes iniciados. Há gurus demais em evidência, e quando a oferta supera a demanda, a autêntica demanda não é suprida. Ninguém se faz discípulo quando há mestres em excesso, e o poder dos taumaturgos de esquina sobre Deus tanto fascina quanto ludibria os incautos e desavisados. Palavra besta, essa, incautos… os incautos merecem pagar o preço da sua estupidez.

Entendo Rimbaud. Oh!, sim, como me sinto próximo a Rimbaud. O verso daquela canção não tão velha expressa não mais que um equívoco, pois não se volta mais puro do céu, se volta mais puro é do inferno. Sem uma temporada no inferno ninguém pode almejar a purificação. Ah!, meu velho Artaban, teus anseios caíram todos por terra e entre o conquistador e o vencido a diferença é bem pouca. Teus ídolos, teus ídolos… e aqueles sôfregos momentos em que te entregavas à mais estúpida e desmedida embriaguez, rodopiando sobre ti mesmo ébrio de entusiasmo… por uma vida que não se consumou. A embriaguez do êxtase ainda é para ti uma tentação tanto quanto a ascese. Ah!, meu caro Artaban, a tentação da ascese, e essa ânsia pelos abismos da mística. Sondas os abismos da ascese e da mística mas não te decides pelo grande e fatal mergulho.

Por isso entendo Rimbaud. Tertium non datur! Dividido entre o apolíneo e o diniosíaco, mas incapaz de optar por um ou outro, deixas-te postar na vil fileira dos mornos, daqueles que, ao final e ao cabo, serão vomitados, não merecendo que seu nome seja inscrito no livro da vida, no grande e terrível Livro da Vida, cuja letras são gravadas a fogo. Meu desolado amigo Artaban, teu reino não é deste mundo… nem, tampouco, do outro. Teu reino é o reino dos que abdicaram. Mas os que abdicaram não têm reino, Édipos errantes que são. Teu reino, Artaban…, teu reino… Édipo errante que és, tão errante que nemhum solo é suficientemente plano para dar descanso aos teus pés furados.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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