“Que se passa? Resolveu se acovardar? Que história é essa de postar um texto e depois excluí-lo?” Ergui os olhos e lá estava ele, novamente, à porta da biblioteca. Diabo de sujeitinho insistente, esse Artaban. Quando interrompi a leitura em que estava imerso e o fitei, ele me encarou, olhos nos olhos. Acho que corei, sei lá, só sei que fiquei meio desconcertado com as palavras que ele pronunciara, como sempre, sem aviso prévio. Depois de me fitar por não mais que alguns segundos, que, no entanto, tiveram para mim a duração de uma eternidade, entrou, empertigando-se defronte ao birô, diferentemente do que costumava fazer, pois nunca antes ele se postara assim tão afrontosamente diante de mim. “Olhe, rapaz”, disparou com sua voz firme e acusativa, “estou decepcionado com você. Eu nunca pensei que tal coisa pudesse acontecer. Como é que pode?, postar um texto para, poucas horas depois, excluí-lo… Estou mesmo surpreso com sua atitude. Parece que eu ando incomodando mesmo, não é?”

Artaban não estava para prosa. Referia-se ao texto que eu escrevera a semana passada, falando da ocasião em que ele aqui estivera e contestara o conceito junguiano de sincronicidade. Depois que ele saiu, escrevi um texto relatando nossa conversa e o postei no blog. Entretanto, me senti tão perturbado que, à noite, ao retornar do trabalho, resolvi excluí-lo, não sem certo pesar, pois não me é comum proceder dessa maneira. Mas eu estava tão incomodado com o relato que fizera que não consegui manter o texto postado.

Por enquanto, eu não pronunciara ainda uma única palavra. Artaban, hirto diante do birô, me deixava sem ação. Eu não sabia o que pensar nem o que fazer naquela situação, estava mesmo encurralado. Mas Artaban era inclemente quando se tratava de confrontar as minhas convicções, e não se fez de rogado. Indiferente à minha expressão de desespero, prosseguiu: “Que raio de convicção é essa que não resiste a um confronto? Vejo que o alicerce sobre o qual edificaste tua visão de mundo parece bem frágil, não é meu caro amigo? Vê a leseira em que te encontras… Estás tão confuso que nem consegues escrever. Olha que agora tens um compromisso com teus leitores. Não se brinca com as palavras. Escrever é coisa séria. Eu sei o que anda te perturbando. Não são apenas as minhas observações que te incomodam. Aquilo que disse Simone Weil sobre a responsabilidade de escrever…”

Por um momento parou de falar. A exemplo do que fizera quando aparecera por aqui na semana passada, se encaminhou em direção à estante e pegou o volume três da correspondência de Jung. Abriu o livro aleatoriamente e leu, em voz alta, uma carta de Jung ao Reverendo Morton Kelsey, pastor de uma igreja episcopal americana. A carta era a resposta de Jung a uma carta enviada pelo pastor na qual este tecera alguns comentários sobre o livro “Resposta a Jó”, obra que está elencada entre as mais polêmicas de quantas foram escritas pelo psiquiatra suíço.

Depois de ler a carta, Artaban fechou o livro, pondo-o de volta na prateleira de onde o tirara. Virou-se para mim e disse: “Não vou mais me demorar. Vim aqui com um objetivo: dizer-te que reconsidere tua atitude tomada há alguns dias quando resolveste excluir o texto sobre a sincronicidade. Deixa de bobagem e vai em frente. O ato foi cometido, no momento em que escreveste o relato. Portanto, não há por que retroceder. Que medo é este que toma conta de ti agora, te deixando paralisado? Faze o que tens que fazer. Posta novamente o texto, e deixa que as palavras, qual sementes lançadas em solo fértil e bem adubado, produzam, a seu tempo, os frutos necessários. A verdade não pode ser escamoteada. Não é por te furtares a encarar de frente as questões que te são postas que te safarás do inevitável confronto com a verdade. Eu só te digo uma coisa: quem pensa que se protege por evitar o confronto com suas dúvidas está armando uma cilada na qual, mais ou cedo ou mais tarde, cairá. Se não te deste conta ainda, quero te advertir de que o demônio meridiano está te rondando à espera que o enfrentes; desse confronto, meu bom amigo, estejas certo, não poderás fugir. Enfrenta-o logo e não proteles o que não pode mais ser protelado, pois já estás atrasado em relação a ti mesmo”.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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