“A sincronicidade é uma falácia”, ecoou nos meus ouvidos a frase límpida e seca, vindo de fora da biblioteca. Antes mesmo, porém, que o ente de quem partira a afirmação peremptória aparecesse na porta eu já sabia de quem se tratava: pelo tom da voz e pela forma como as palavras foram pronunciadas não poderia ser outro: o velho e renitente Artaban aparecia para mais uma de suas insistentes e incômodas visitas. Suas palavras me chegaram quase como um insulto. Ele sabe da alta conta em que tenho o conceito junguiano de sincronicidade. E isso tanto é fato que escolhi essa palavra para nomear o blog em que este texto está sendo postado.

“É uma falácia, sim”, prosseguiu Artaban adentrando a porta entreaberta da biblioteca, “e não uma das menores falácias junguianas”. “O conceito de sincronicidade é um engodo”, disse. “Saiba que, se submetido a um teste estatístico, ele não se sustenta”. Eu estava pasmo. Fiquei olhando para ele, agora ali postado ante o birô em que me encontrava lendo, tantalizado. A surpresa foi tamanha que eu não sabia o que dizer. Pareceu-me que aquela insólita figura resolvera deliberadamente desconstruir tudo em que acredito. Há menos de uma semana apareceu por aqui me jogando Nietzsche na cara, agora, o escolhido fora Jung e, como se não bastasse, ele escolhera para atacar um dos conceitos do Mestre suíço de que mais gosto.

Recomposto, depois de respirar profundamente, encarei-o, enfim: “Então a sincronicidade é uma falácia?”, indaguei. “Sim, caro amigo”, redarguiu Artaban, “essa história de sincronicidade, de que não existe acaso e outras baboseiras mais é tudo conversa pra boi dormir. Está mais do que na hora de acordares e encarares os fatos da vida objetivamente. E saibas que, se objetivamente e com isenção te colocares diante da realidade, muitos desses conceitos junguianos que sempre tiveste em alta conta caem por terra. Aliás, por boa parte da comunidade científica o tal mestre suíço a quem tanto reverencias nunca foi levado muito a sério, sabes bem disso”. 

Eu não sabia o que dizer. Estava mesmo paralisado ante a ousadia do meu recalcitrante amigo. Deveria defender os pontos de vista em que há muito passei a acreditar? Deveria aceitar a provocação e contra-argumentar? Senti vontade de fazê-lo, mas apenas uma débil vontade. Artaban, eu tinha que admitir, estava tocando num ponto nevrálgico do meu sistema de crenças. Para ser bem sincero, ultimamente tenho questionado alguns conceitos e crenças sobre os quais fui estruturando minha visão de mundo. Ora, em tal circunstância, como contestar os arrazoados de Artaban? Senti-me encurralado. Enquanto, ensimesmado, me deixava levar por essas incômodas ruminações, Artaban se aproximou da estante e passou os dedos vagarosamente pela coleção das obras completas de Carl Gustav Jung. Depois pegou um dos volumes da correspondência do psiquiatra suíço e, sem se virar para mim, leu em alto e bom som o trecho de uma das cartas em que Jung fala de subjetividade e consciência do próprio valor. Fiz que não ouvi e enfiei a cara no volumoso “A força das coisas”, que eu tinha em mãos quando Artaban adentrara a biblioteca.   

Então fechei o livro e falei: “Artaban, e o meu blog? Sabes que o denominei sincronicidade. E todos os temas de que nele tenho tratado de alguma forma estão ligados a esse conceito. Olha, queres saber de uma coisa?, deixa-me em paz e fica lá com tuas conclusões e certezas que eu fico com as minhas. Tuas visitas inesperadas me têm perturbado um bocado. Vê que já nem consigo escrever os textos diários para postagem no blog. E devo isso especialmente às tuas inconvenientes intromissões. Sabes que há um lastro de vinte outras categorias sobre as quais posso escrever, mas parece que agora resolveste atrair toda atenção para ti. Para teu governo, é bom te convenceres de que a 21ª. categoria é apenas mais uma, tão importante quanto qualquer das demais”.

“Ah!, é? Meu caro amigo”, interpelou Artaban, “saiba que se há algum equívoco no nosso diálogo, esse deve ser creditado a ti e não a mim, pois, sem que te desses conta, criaste vinte outras categorias apenas como pretexto para a vigésima primeira, objetivo máximo de tuas reflexões. À revelia de ti mesmo, elas te foram postas como iscas, e tu caíste direitinho. Mas não te perturbes tanto, no tempo certo…” Interrompendo a frase,  Artaban deu meia-volta e saiu, sem nem dizer um até logo, deixando-me de queixo caído, feito um tolo, sem saber exatamente o que pensar de suas impertinentes palavras.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles