Muitas vezes refleti aqui sobre onde estariam os limites entre a necessária resistência contra o “destino” e a igualmente necessária submissão. (…) Creio que realmente devemos empreender coisas grandes e próprias, mas ao mesmo tempo fazer o que é óbvia e universalmente necessário; precisamos enfrentar o “destino” – o fato de esse conceito ser “neutro” me parece importante – com a mesma determinação com que devemos nos submeter a ele em tempo oportuno. Só se pode falar de “condução” para além desse duplo processo; Deus não vem ao nosso encontro apenas como um tu, mas também “disfarçado” de “isso”; portanto, a minha questão trata, no fundo, de como podemos achar um “tu” nesse “isso” (“destino”), ou em outras palavras – (…) – como o “destino” torna-se de fato “condução”.

Dietrich Bonhoeffer

[Bonhoeffer, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Tradução de Nélio Schneider. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2003, Carta para Eberhard Bethge, p. 306-307.]

Fiquei profundamente impressionado quando li as primeiras páginas do volume das cartas e anotações escritas pelo teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer ao longo dos 23 meses em que permaneceu preso pela polícia nazista alemã, antes de ser executado, às vésperas da capitulação do regime totalitário de Hitler. Minha descoberta de Bonhoeffer aconteceu em 2004. Desde então, a curtos intervalos de tempo, retorno à leitura de suas cartas e anotações.

Curioso nesse retorno que sempre faço ao teólogo alemão é o sentimento contraditório que experimento cada vez que o leio. Incomoda-me profundamente comparar sua vida com o fim trágico que o destino lhe reservou. Homem de uma integridade admirável, dotado de um fino senso ético e moral, profundamente sensível à condição frágil e sofredora da humanidade, e, sobretudo, de uma coerência a toda prova, custa-me pensar que este homem, que, além de tudo isso, dedicou boa parte de sua vida à disseminação da mensagem de Cristo, tenha tido um fim tão trágico e tão precoce, pois foi morto quando contava apenas 39 anos. Mais trágico e perturbador ainda é saber que por uma diferença de um ou dois dias sua vida poderia ter sido poupada.

Na prisão, Bonhoeffer indagava-se sobre o destino e sobre a manifestação de Deus nesse mesmo destino, o destino humano, o itinerário de uma vida. Qual é a interferência de Deus no destino? Uma outra pergunta, que antece essa, igualmente inquietante, não pode silenciar: existe um destino a ser cumprido? Quais são os limites do livre-arbítrio na determinação dos fatos de que é feita uma vida? Até que ponto nos é dado escolher e até que ponto somos impelidos, à revelia de nós mesmos, a cumprir um determinado itinerário de vida? Em suam: Deus efetivamente interfere no destino humano?

Ante tais indagações, o espaço que sobra para o mistério é muito maior do que o que se consegue ter para a elucidação das questões. Ainda assim o homem segue, prossegue, insistindo em crer num Deus que, não raras vezes, se faz notar muito mais pela ausência do que pela presença. Numa outra carta  endereçada a Eberhard Bethge, escrita na prisão em 16 de julho de 1944, encontramos algumas das palavras mais pungentes de Bonhoeffer, palavras sobre as quais tenho refletido desde que as li pela primeira vez:

E não podemos ser honestos sem reconhecer que temos de viver no mundo – etsi deus non deratur. E reconhecemos justamente isto – perante Deus! Deus mesmo nos obriga a esse reconhecimento. Assim, nossa maioridade nos leva a um reconhecimento mais veraz de nossa situação perante Deus. Deus nos faz saber que temos de viver como pessoas que dão conta da vida sem Deus. O Deus que está conosco é o Deus que nos abandona (Mc 15.34)! O Deus que faz com que vivamos no mundo sem a hipótese de trabalho Deus é o Deus perante o qual nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos sem Deus (p. 487).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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