Algo nos inquietava. Precisávamos de rotinas e condutas no Serviço adaptadas à nossa cultura e realidade e não apenas copiadas de textos internacionais ou oriundos do Sul e Sudeste do País.

A partir de uma revisão iniciada pela Dra. Ticiana Rolim, então residente do Serviço, passamos a estabelecer condutas padronizadas nas enfermarias e ambulatórios de gastroenterologia do HGF. Com o passar dos anos, o nosso protocolo de condutas cresceu e se consolidou no Hospital e passamos a distribuí-lo, no início de cada ano, aos médicos, médicos-residentes e estudantes que conosco trabalhavam.

Esse ano decidimos ousar. Convocamos colegas do Serviço e ex-residentes do HGF para revisar os textos e ampliá-los para que pudéssemos dividir a nossa experiência ao longo desses anos com toda a comunidade médica do Ceará. Não escrevemos um compêndio nem uma obra acabada. Trata-se de um pequeno guia de condutas, adaptado à nossa realidade e embasado em experiências já publicadas, que possa ser conduzido, como um amigo e orientador inseparável, no dia a dia das enfermarias e ambulatórios.

Por fim, como não somos felinos e não poderemos ensiná-los o pulo do gato, tentaremos apenas  ensinar O PULO DO GASTRO.

Dr. Sérgio Pessoa

[Pessoa, Francisco Sérgio Rangel de Paula. O pulo do gastro: manual de rotinas e condutas em gastroenterologia. – Fortaleza: Premius, 2010, p. 7]

A mais eminente discípula brasileira de Jung, a psiquiatra Nise da Silveira, num belo texto publicado originalmente em 1965, intitulado Simbolismo do gato, escreveu, ao se referir à astúcia desses felinos: “Carregado de tão pesadas e sombrias projeções que só muito lentamente vão se atenuando, o gato aparece na maioria dos contos populares e fábulas como um animal pérfido, egoísta, astuto. É assim que o encontramos nas fábulas de La Fontaine (século XVII). Sua astúcia é particularmente posta em relevo. Por exemplo, no  ´Gato e a raposa´ seu único processo de escapar ao cão resulta mais eficiente que as mil manhas da raposa”.

Tivesse a Dra. Nise da Silveira parado por aí e nos teria deixado uma impressão que não se poderia qualificar como das mais abonadoras sobre a conduta dos felinos, uma vez que pareceria que sua decantada astúcia seria usada apenas em proveito próprio. Dando prosseguimento à sua análise, porém, escreve a Dra. Nise: “Mas a engenhosidade do gato não se manifesta só aplicada em proveito próprio. Entre os escandinavos acreditava-se que um espírito benfazejo, revestindo forma de gato, trazia para a casa onde habitava leite, creme, manteiga e cereais retirados dos celeiros dos vizinhos. Em ´O gato de botas` (Perrault) toda uma trama de hábeis ardis é desenvolvida pelo animal com o objetivo de fazer a fortuna de seu dono. Um conto italiano, ´Gagliuso`, narra também os golpes de astúcia de um gato, graças aos quais seu proprietário enriquece” (Silveira, Nise da, (1905-1999). Senhora das imagens internas: escritos dispersos de Nise da Silveira / organização Martha Pires Ferreira. – Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2008, p. 34. (Cadernos da Biblioteca Nacional; v5)).

Pois bem, foi por acreditar que quem é detentor de alguns saberes que podem ajudar a encurtar caminhos e apontar trilhas – saberes esses que podem em algumas ocasiões fazer as vezes do pulo do gato -, devem ser divididos com outros a quem poderiam servir de ajuda, que o Dr. Francisco Sérgio Rangel de Paula Pessoa, gastroenterologista,  houve por bem publicar um manual que pudesse auxiliar a outros profissionais que labutam nessa área médica.    

Para a consecução do projeto, o autor contou com os seguintes colaboradores com os quais dividiu a tarefa de redigir os diversos  textos que compõem a obra: Dra. Alessandra Mont´Alverne Pierre, Dra. Ana de Lourdes de Oliveira, Dra. Andrea Benevides Leite, Dra. Claudia Maria de Oliveira Alves, Dra. Germana Alves Corsino, Dra. Mariana Rolim Fernandes Macedo, Dr. Ricardo Rangel de Paula Pessoa, Dra. Silvia Romero Pinheiro Rocha, Dra. Ticiana Maria de Lavor Rolim e Dra, Ticiana Mota Esmeraldo.  

O livro, que ganhou o curioso título de O Pulo do Gastro, numa explícita alusão à fábula de La Fontaine mencionada acima pela Dra. Nise da Silveira, é dividido em cinco módulos e quarenta e um capítulos: Módulo I: Boca e esôfago; Módulo II: Estômago; Módulo III: Intestinos; Módulo IV: Vias biliares e pâncreas; Módulo V: Fígado. O trabalho resultou especialmente da experiência do autor bem como da equipe no Serviço de Gastroenterologia do HGF.

Auguramos ao Dr. Sérgio Pessoa e sua equipe os melhores votos de sucesso a essa obra que muito enriquece a medicina no Estado do Ceará. Certamente os que começam a dar os primeiros passos na atividade médica serão os mais beneficiados com as diversas dicas disseminadas ao longo do livro, em verdade verdadeiros “pulos do gastro”. Mas não somente os novos hão de ser os beneficiários, pois o fato de apresentar uma padronização de rotinas médicas, penso, constitui por si só trabalho especialmente meritório e útil a todos profissionais da área, iniciantes ou veteranos.

Para concluir, gostaria de esclarecer aos leitores  que, além dos méritos inerentes ao livro, já salientados,  um dos fatores que me motivou a escrever este breve comentário, cujo objeto é uma obra que foge ao tipo de literatura habitualmente comentada neste blog, foi a peculiaridade do título, uma clara alusão à raça felina, pois, como sabem os que leem o Sincronicidade, os gatos constituem um dos temas sobre os quais escrevo.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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