Robert Alter e Frank Kermode
[Alter, Robert e Kermode, Frank (Organizadores). Guia Literário da Bíblia. Tradução Raul Fiker; revisão de tradução Gilson César Cardoso de Souza. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 16. – (Prismas)]
Seguramente nenhum outro livro na história da humanidade foi tão lido, discutido, estudado ou criticado quanto a Bíblia. A Bíblia se converteu, por isso, em motivo para que milhares de outros livros fossem escritos desde o advento da imprensa. A propósito, vale salientar que o primeiro livro a vir a lume quando da invenção da imprensa por Gutemberg foi, exatamente, um exemplar da Bíblia. Tal profusão de obras tratando da Escritura sagrada ancora-se no fato de que sua abordagem pode se dar sob ângulos muito diversos e até díspares.
A propósito de tais publicações, gostaria de mencionar aqui um livro maravilhoso que tem por objeto uma análise da Bíblia sob o ponto de vista literário. Trata-se do Guia Literário da Bíblia, organizado por dois estudiosos, Robert Alter e Frank Kermode. Escrito por diversos autores de seis diferentes nacionalidades, o livro compreende um total de quarenta textos, incluindo uma Introdução geral, uma Introdução ao Antigo Testamento e uma ao Novo Testamento. No final traz, ainda, um glossário de termos bíblicos e literários.
Vista sob a perspectiva da crítica literária, o que primeiro salta aos olhos, em se tratando da Bíblia, é a diversidade de gêneros e estilos que a perpassam. Isso é evidenciado no texto escrito por Robert Alter , Introdução ao Antigo Testamento, onde afirma:
Qualquer explicação literária da Bíblia hebraica deve reconhecer sua qualidade de extrema heterogeneidade, uma condição que os ensaios deste volume vivamente confirmarão. De um certo ponto de vista, não é sequer uma coleção unificada, mas sim uma antologia solta que reflete cerca de nove séculos de atividade literária hebraica, desde a Canção de Débora e outros poemas arcaicos mais breves inseridos nas narrativas em prosa até o Livro de Daniel (século II a. C.). A variedade genérica dessa antologia é de qualquer modo notável, englobando historiografia, narrativas ficcionais e muita mistura de ambos, listas de leis, profecias tanto em verso quanto em prosa, obras aforísticas e de meditação, poemas de culto e devoção, hinos de lamentação e vitória, poemas de amor, tábuas genealógicas, contos etiológicos e muito mais (p. 14)
A importância de um estudo literário da Bíblia é evidenciado no texto de autoria de Helen Elsom intitulado O Novo Testamento e a escrita greco-romana, no qual a autora salienta o quanto o estilo literário e a língua em que foi divulgada a Bíblia nos primórdios do cristianismo contribuiu para que este se firmasse como religião dominante:
O Novo Testamento está escrito em grego e é dirigido – explicitamente nas dedicatórias de Lucas e nas Epístolas – a um público que vive no mundo oriental, de língua grega, do Império Romano. As expectativas de seus possíveis leitores, que devemos entender quando lemos o texto, são influenciadas por esse fato. A língua grega, com sua tradição literária e filosófica, era parte da cultura “oficial” do império, no qual se esperava dos administradores que tivessem ao menos um conhecimento superficial de língua e literatura gregas. Ademais, embora o Novo Testamento seja uma reelaboração da Escritura judaica, o texto concreto a que ele alude é a versão dos Setenta, que já havia iniciado o processo de reescrever as Escrituras para o mundo helenístico. A história ulterior do cristianismo sugere que ele foi ajudado em seu caminho para tornar-se a religião dominante pelo fato de seus textos sagrados serem escritos em grego e em formas literárias que, se não propriamente gregas, podiam ser compreendidas em termos gregos, populares bem como eruditos (p. 601).
O Guia Literário da Bíblia pode seguramente ser indicado como uma obra cujos textos devem ser lidos como introdução e preparação à leitura de cada um dos livros que compõem a Bíblia. Para concluir, transcrevo um trecho do texto da Introdução geral, em que os organizadores da obra justificam a abordagem da Bíblia do ponto de vista da crítica literária:
Se nos fosse pedido para enunciar mais positivamente por que abordamos o assunto da maneira que o fizemos, nossa resposta seria a seguinte. Em primeiro lugar, a Bíblia, considerada como um livro, atinge seus efeitos por meios que não são diferentes dos geralmente empregados pela linguagem escrita. Isso é verdade quaisquer que sejam nossas razões para atribuir valor a ela – como o relato da ação de Deus na história, como o texto fundador de uma religião ou religiões, como um guia para a ética, como evidências sobre povos e sociedades no passado remoto e assim por diante. De fato, a análise literária deve vir primeiro, pois, a menos que tenhamos um entendimento claro do que o texto está fazendo e dizendo, ele não terá muito valor sobre outros aspectos. Tem-se dito que a melhor razão para o estudo sério da Bíblia – para aprender como lê-la bem – está escrita ao longo da história da cultura ocirdental: que se veja o que ocorre quando as pessoas a leem equivocadamente, a leem mal ou a leem com falsas suposições (p. 12)