Nossa civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinações vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuições resulta o acervo cultural comum de bens materiais e ideais. Além das exigências da vida, foram sem dúvida os sentimentos familiares derivados do erotismo que levaram o homem a fazer essa renúncia, que tem progressivamente aumentado com a evolução da civilização. Cada nova conquista foi sancionada pela religião, cada renúncia do indivíduo à satisfação instintual foi oferecida à divindade como um sacrifício, e foi declarado ‘ santo’  o proveito assim obtido pela comunidade. Aquele que em consequência de sua constituição indomável  não consegue concordar com a supressão do instinto, torna-se um ‘criminoso’ , um ‘outlaw’, diante da sociedade – a menos que sua posição social ou suas capacidades excepcionais lhe permitam impor-se como um grande homem, um ‘herói’.

Sigmund Freud

[Freud, Sigmund. Moral sexual  ‘civilizada’ e doença nervosa moderna. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. IX: ‘Gradiva’  de Jensen e outros trabalhos. Tradução do alemão e do inglês sob a direção-geral e revisão técnica de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Ed. Ltda., 1976, p. 192.]

Freud sempre exerceu sobre mim enorme fascínio desde a primeira que o li. Foi um caso de amor à primeira vista, e o fato é que, desde que o li pela primeira vez, jamais deixei de admirar este homem extraordinário cuja obra, já centenária, permanece, quer admitam ou não seus críticos, atualíssima.

Freud tinha uma acuidade e uma percuciência invejáveis quando se tratava de esquadrinhar os complexos e surpreendentes meandros do psiquismo humano. Ele foi de uma profundidade e radicalidade nunca igualadas por quem quer que seja, antes ou depois dele. O grande médico vienense foi único, singular e, por que não dizer, genial. Queiramos ou não somos todos devedores de Freud.

Relendo há pouco um de seus textos escrito há mais de um século, pois foi publicado em 1908, me pus a pensar o que diria Freud hoje a propósito da sexualidade como é experimentada em nossa pós-modernidade. No texto referido, intitulado Moral sexual  ‘civilizada’ e doença nervosa moderna, postula o velho mestre que a civilização não se manteria não fosse uma boa quota de renúncias  a que seus membros devem necessariamente se submeter.  Tais renúncias estão primordialmente associadas à sexualidade sob as mais diversas nuances em que se apresenta.

Ora, acontece que, por uma série de motivos, após a grande liberação sexual dos anos sessenta, essa renúncia provavelmente esteja cada vez mais difícil. Vivemos uma época que tem como uma de suas características a superexposição das pessoas aos estímulos sexuais. Se, por um lado, isso tem como uma de suas resultantes a vulgarização e banalização do sexo, por outro  acarreta também uma espécie de superestimulação, cujas consequências podem ser bastante danosas, podendo ocasionar, inclusive, frequentes anomalias.

Nesse mesmo texto Freud usa um conceito que será muito discutido na psicanálise, o qual está diretamente relacionado à mencionada renúncia ou, para usar um  outro vocábulo por ele utilizado, sacrifício. Trata-se do conceito de sublimação. A propósito, escreve o  fundador da psicanálise:

“O instinto sexual – ou, mais corretamente, os instintos sexuais, pois a investigação analítica nos ensina que o instinto sexual é formado por muitos constituintes ou instintos componentes – apresenta-se provavelmente mais vigorosamente desenvolvido no homem do que na maioria dos animais superiores, sendo sem dúvida mais constantes, desde que superou completamente a periodicidade à qual é sujeito nos animais. Esse instinto coloca à disposição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade. A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, chama-se capacidade de sublimação.  Contrastando com essa motilidade, na qual reside seu valor para a civilização, o instinto sexual é passível também de fixar-se de uma forma particularmente obstinada, que o inutiliza e o leva algumas vezes a degenerar-se até as chamadas anormalidades” (p. 193).

A questão aqui seria indagar até que ponto é viável, ainda, a sublimação, numa sociedade permissiva e desregrada como a nossa, em que o princípio de prazer – do qual o instinto sexual é tributário – não raro se sobrepõe e suplanta o princípio de realidade – de que depende a disponibilidade para a sublimação.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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