O Evangelho vem de Jesus Cristo, a religião não. É preciso partir de uma distinção básica, que agora vários teólogos já propuseram, entre o Evangelho e a religião. O Evangelho não é religioso. Jesus não fundou nenhuma religião. Dedicou-se a anunciar e promover o Reino de Deus, ou seja, uma mudança radical de toda a humanidade em todos os aspectos. Os pobres são os autores dessa mudança. Jesus se dirige aos pobres sabendo que só eles são capazes de atuar com essa sinceridade, com essa autenticidade de se promover um novo mundo. Jesus não fundou uma religião, mas seus discípulos criaram uma religião a partir dele. Por quê? Porque a religião é algo indispensável aos seres humanos. Não se pode viver sem religião. Como começou a religião cristã? Deve ter começado quando Jesus se transformou em objeto de culto. Isso aconteceu muito cedo, principalmente entre os discípulos que não o conheceram pessoalmente, não tinham vivido com ele nem ficado perto dele. Na geração seguinte ou entre os que viviam mais distantes, Jesus se transformou em objeto de culto e com isso se desumanizou progressivamente. O culto a Jesus vai substituindo o seguimento de Jesus. Jesus nunca tinha pedido aos discípulos um aro de culto, nunca tinha pedido que lhe oferecessem um rito, nunca. Ele quis o seguimento. Jesus veio para mostrar o caminho para que o sigamos. Isso é o básico. É claro que não sabemos tudo, porque a maioria dos que seguiram o caminho de Jesus era pobre. A maioria está no outro polo, na religião, ou seja, dedicando-se à doutrina, ensinando a doutrina, defendendo a doutrina contra os hereges e as heresias. Essa foi uma das grandes tarefas: praticar os ritos e formar a classe sagrada, a classe sacerdotal. Com os Concílios de Niceia e Constantinopla, já há um núcleo de ensino e de teologia e a Igreja já se dedica a defender, promover e aumentar essa teologia. Até Constantino não havia distinção entre pessoas sagradas e profanas. Todos eram leigos. O clero como classe separada é uma invenção de Constantino. Quando eu era jovem, nos deram ´história da Igreja´, que na realidade era ´ história da instituição eclesiástica´. Aí só se falava de religião, supondo que a religião fosse a introdução ao Evangelho. Mas o Evangelho se vive na vida real, material, social, enquanto a religião se vive num mundo simbólico. Tudo é simbólico: doutrina, ritos, sacerdotes. As religiões estão sempre associadas a uma cultura.

Pablo Richard

[Richard, Pablo. Movimento bíblico no povo de Deus e crise irreversível da Igreja hierárquica. Em: Hoornaert, Eduardo (org.). Novos desafios para o cristianismo: a contribuição de José Comblin. – São Paulo: Paulus, 2012, p. 30.]

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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