Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo.

Michel de Montaigne

[Montaigne. Ensaios. – Tradução, prefácio e notas linguísticas e interpretativas de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. – Livro Segundo, Capítulo I, Da incoerência de nossas ações, p. 285.]

Há alguns dias minha amiga Rita de Cássia Brígido Feitoza comentou comigo, muito entusiasmada, um livro sobre Montaigne que estava lendo. No dia seguinte tive oportunidade de ver o livro. Bastou dar uma rápida folheada em suas páginas para que logo me decidisse a adquiri-lo. Daqui a alguns dias pretendo comentá-lo aqui, quando tiver concluído a leitura, que tem me proporcionado momentos de grande deleite.

Uma dos primeiros resultados dessa leitura foi minha decisão de retornar aos Ensaios, de autoria do próprio Montaigne. Em 1994 eu havia adquirido uma edição completa, publicada pela Ediouro. Bastou-me a leitura aleatória de algumas páginas para logo me sentir tomado de amores pela obra e pelo autor, por vários motivos, não tendo sido o menor deles o fato de ter sido Montaigne o inventor desse gênero literário, o ensaio, pelo qual tenho particular predileção, tanto como escritor quanto como leitor.

Partindo da observação de si mesmo, chegou o autor a maravilhosos insights, o que lhe permitiu, ao longo dos três livros que compõem a edição completa dos Ensaios, opinar sobre assuntos os mais diversos, numa miscelânea que inclui desde temas de grande complexidade a alguns que poderíamos dizer da mais absoluta trivialidade. Ressalve-se, porém, que sob o olhar arguto de Montaigne, nada é considerado trivial, pois ele consegue tirar grandes ensinamentos dos assuntos mais banais e corriqueiros do dia a dia.

Em que pese a diversidade de assuntos, tenho especial apreço por aqueles que permitem ao autor digredir sobre si mesmo e sobre o ser humanos de forma geral. É nesses momentos que se percebe mais a argúcia e o alcance dos seus escritos. Um exemplo disso é o trecho citado em epígrafe a este texto. Suas palavras nos fazem ver o quanto se mostrou percuciente no conhecimento da natureza humana, naquilo que, em essência, nos constitui a todos.

Nesse sentido, pode-se dizer que  Montaigne, com três séculos de antecedência, antecipou diversas premissas sobre as quais o mestre vienense, Sigmund Freud, construiria o arcabouço teórico da psicanálise. Em diversas ocasiões me tem ocorrido, ante a leitura dos Ensaios, o pensamento: isso que aqui está escrito poderia perfeitamente ter emanado da pena freudiana.

A propósito, transcrevo, para concluir essa breve reflexão, um trecho do mesmo texto citado acima, em que, freudianamente, Montaigne fala dos muitos que nos habitam:

Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal e avarento, e pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim mesmo um juízo completo, simples, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra. “Distingo” é o termo mais encontradiço em meu raciocínio (p. 286).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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