Quando pensamos sobre o fosso entre a informação bruta e sua vida numênica na tela – algo que tento evitar, porque é uma reflexão sombria e difícil, bastante parecida com a contemplação da idade do universo -, toda a sensação tem um quê estranhamente religioso, como quando a mente busca uma metáfora vibrante (e conveniente) para a verdade maior que jaz além. As catedrais, lembremos, eram “infinidade imaginada”, o céu transposto para a escala humana. A mente medieval não era capaz de apreender a plena infinidade do sagrado, mas podia subjugar a si mesma diante dos campanários majestáticos de Chartres ou Saint-Sulpice. A interface oferece uma visão de esguelha comparável da infosfera, um ato de semi-revelação e semi-ocultamento. Ela torna a informação assimilável por nós ao encobrir a maior parte dela – pela simples razão de que “a maior parte dela” é multitudinária demais para ser imaginada num único pensamento.

[Johnson, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Tradução, Maria Luísa X. de A. Borges; revisão técnica, Paulo Vaz. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 172.]

Parece que o sagrado nos ronda sempre, quer queiramos, quer não, mesmo que apenas como metáfora. É o que fica patente no belo texto com que Steven Johnson conclui seu livro Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar.

O autor, considerado um dos mais influentes pensadores do ciberesbaço, ao refletir sobre a interface, estabelece uma relação metafórica entre essa e as religiões. Na perspectiva de Steven, assim como as religiões atuam como mediadoras entre o humano e o sagrado, da mesma forma a interface faz as vezes de mediadora entre nós e os ícones visíveis no desktop. Afirma ele:

A experiência do divino geralmente envolve algum tipo de mediação, até porque a maioria dos seres humanos aceita a ideia de que um encontro direto poderia fazer alguns fusíveis voarem pelos ares. (Há uma cláusula de capacidade de carga limitada inscrita na maioria dos textos sagrados, por boas razões.) É aí que a interface moderna entra em tão poderosa ressonância com os costumes e a pompa da fé organizada. Ambos são sistemas imaginários fundados num mundo governado por forças invisíveis, que só se tornam sensíveis através dos ícones luminosos e dos rituais da fé. Os designers de interface falam da “ilusão do usuário”, mas há também uma forte medida de “suspensão da crença” no desktop contemporâneo – a qual, se cancelamos as negativas, nos deixam com a antiquada crença. Provavelmente é assim que deveria ser (p. 174). 

Ao pensar na metáfora proposta por Steven Johson, não pude me furtar a uma sensação de embevecimento, ao constatar como duas realidades aparentemente tão distantes e tão diferentes podem se tocar, ou seja, a religião e a cibernética. A primeira, tendo como fundamento o sagrado; a segunda, ancorada na interface. Entre as duas, um pensador e escritor extremamente criativo, a ponto de encontrar pontos de contato entre uma das criações mais arcaicas da mente humana, a religião, e uma das invenções mais sofisticadas, o computador.  

Na comparação proposta em Cultura da interface, o homem que pela primeira vez na história da humanidade, tocado pela grandiosidade de um universo  ainda ininteligível, houve por bem reverenciar as forças desconhecidas e superiores da natureza, conferindo-lhes uma dimensão de sacralidade,  encontra o homem do século XXI, que em busca de superar tempo e espaço, foi capaz de projetar máquinas tão complexas quanto o computador.

Por mais evoluídos que nos julguemos, somos todos, não há como negar, almas muito antigas, em quem um quê de anseio pelo sagrado e pelo transcendente acaba se esgueirando e se fazendo notar, mesmo que metaforizado na mais sofisticada interface.  

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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