Declarei publicamente e em alta voz que era cristão e não podia prestar juramento e servir sob outras insígnias que não fossem as de Jesus Cristo, Filho de Deus, Pai onipotente.

São Marcelo

[Sgarbossa, Mario. Os santos e os beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente: com uma antologia de escritos espirituais. Tradução Armando Braio Ara. – São Paulo: Paulinas, 2003, p. 613.]

A Igreja Católica celebra hoje a festa de São Marcelo, centurião romano martirizado em 298, em Tânger. Transcrevo, abaixo, um excerto da história deste santo, conforme relatada por Mario Sgarbossa:

“Marcelo era um centurião do exército romano da guarnição de Tânger. Como tal foi enviado a participar dos festejos do aniversário do imperador Diocleciano. Era sabido que em tal circunstância os participantes deviam honrar uma estátua do imperador com um gesto (lançar incenso no braseiro posto a seus pés) que os cristãos consideravam idolátrico.

“Marcelo recusou-se a fazê-lo e, para mostrar-se coerente, retirou as insígnias de centurião, jogou-as aos pés da estátua e se declarou cristão. Por muito menos isso seria passível da pena capital.

“Foi chamado o escrivão para que redigisse uma ata oficial sobre a rebeldia do centurião. O funcionário – em latim, exceptor – recusou-se a redigir as atas processuais. Imitando o centurião Marcelo, jogou fora a pena, protestou pela injustiça perpetrada contra os inocentes, condenados à morte por adorarem o único e verdadeiro Deus, e declarou-se também ele cristão.

“Foram ambos aprisionados e poucos dias depois sofreram o martírio: Marcelo em 30 de outubro, e Cassiano em 3 de dezembro. O poeta Prudêncio dedica-lhes um hino” (Sgarbossa, Mario. Os santos e os beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente: com uma antologia de escritos espirituais. Tradução Armando Braio Ara. – São Paulo: Paulinas, 2003, p. 613).

O que me fascina na história de São Marcelo é a coragem demonstrada por ele, a ponto de empenhar o que há de mais precioso a uma pessoa, a própria vida, em nome da verdade em que acredita. Tal força teve o gesto, que São Cassiano não hesitou em seguir o exemplo, optando por atitude igualmente radical e grandiosa.

Penso que vidas como as de São Marcelo e São Cassiano explicitam da forma mais clara e perfeita o que constitui, em essência, a verdade. Vocábulo complexo esse, difícil de definir. Ante a indagação sobre o que é a verdade, o próprio Cristo silenciou (Jo 18,38). Há muitas acepções em que a verdade pode ser interpretada. Do ponto de vista da mística, creio que exista uma verdade, sim, mas essa deve ser remetida a uma perspectiva existencial.

Quero dizer com isso que, nessa acepção, a verdade é sempre uma verdade pessoal, que tem sentido na perspectiva da vida do sujeito que a experimenta. Paradoxalmente, apesar dessa dimensão individual, ela tem, também, uma dimensão universal. Quero dizer com isso que ela pode ser proposta como verdade a quem se dispuser enveredar pelo caminho que conduz a ela. Nunca será demais salientar, no entanto, que ela é sempre dada numa perspectiva experiencial.

A experiência da verdade, creio, é acessível ao indivíduo por vários caminhos, sendo o mais comum, embora não o menos difícil, o da religião. A propósito, transcrevo, a seguir, um trecho de um dos escritos de Jung sobre o assunto. Escreve Jung:

“É indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa: aquele que a tem, possui, qual inestimável tesouro, algo que se converteu para ele numa fonte de vida, de sentido e de beleza, conferindo um novo brilho ao mundo e à humanidade. Ele tem pistis e paz. Qual o critério válido para dizer que tal vida não é legítima, que tal experiência não é válida sendo essa pistis mera ilusão? Haverá uma verdade melhor, em relação às coisas últimas, do que aquela que ajuda a viver? Eis a razão pela qual eu levo a sério os símbolos criados pelo inconsciente. Eles são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do homem moderno. Eles convencem, subjetivamente, por razões antiquadas: são imponentes, convincentes, palavra que vem do latim convincere, e significa persuadir. O que cura a neurose deve ser tão convincente quanto a própria neurose e, como esta é demasiado real, a experiência benéfica deve ser dotada de uma realidade equivalente. Numa formulação pessimista: deverá ser uma ilusão muito real. Mas que diferença há entre uma ilusão real e uma experiência religiosa curativa? É uma diferença de palavras. Poder-se-ia dizer, p. ex., que a vida é uma enfermidade com um diagnóstico muito desfavorável: prolonga-se por vários anos, para terminar com a morte; ou que a normalidade é um defeito constitutivo generalizado; ou que o homem é um animal cujo cérebro alcançou um superdesenvolvimento funesto. Esta maneira de pensar é privilégio daqueles que estão sempre descontentes e sofrem de má digestão. Ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso devemos tomá-las tais como sentimos. E se uma experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena ou mais significativa para nós, como para aqueles que amamos – então poderemos dizer com toda a tranquilidade: “Foi uma graça de Deus””. [Jung, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental; tradução do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. – Petrópolis: Vozes, 1983. Primeira Seção: Psicologia e Religião,  p. 105.]

Pela convicção que tenho da pertinência das palavras de Jung e pela intercessão de santos como São Marcelo e São Cassiano foi que optei por buscar a experiência da Verdade no seguimento d´O Caminho.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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