“Ave, Maria, cheia de graça: o Senhor é convosco” foi, de acordo com a Vulgata, a saudação do anjo Gabriel a Maria. Reagindo contra a tradução e contra o sentido que lhe foi imputado, considerou-se que “cheia de graça” significaria que Maria não era apenas objeto e receptáculo da benevolência divina, mas que, possuindo toda a plenitude da graça, teria todo o direito de concedê-la.

Jaroslav Pelikan

[Pelikan, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. Tradução Vera Camargo Guarnieri. – São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 30.]

Ela é a medianeira e doadora de todas as graças. É por isso que um dos títulos com os quais mais a reverenciam é, exatamente, o de Nossa Senhora das Graças. Creio que jamais alguém dirá tudo do mistério que envolve a mediação de Maria. Isso porque, entre ela e seus devotos, se estabelece um tipo de relação que leva este último a experimentar situações e vivenciar fatos que extrapolam ou fogem ao escopo das explicações racionais.

Assim é, de fato. Quando tudo parece perdido, quando todas as estratégias já foram experimentadas, quando já se fez todo o possível, eis que, num lampejo, ela passa na frente e – fiat! – o impossível acontece. A propósito, sempre que preciso de um impossível, ocasiões em que invariavelmente recorro a Maria, gosto de lembrar que foi ela a primeira criatura que ouviu das bocas do próprio anjo de Deus palavras que tiveram, simultaneamente, o valor de uma promessa: “Para Deus, com efeito, nada é impossível” (Lc 1,37).

Tremo de medo quando escrevo coisas dessa natureza. É que hoje os artigos de fé são vendidos (não garanto que, de fato, sejam adquiridos) a preços muito módicos e com muita facilidade. Há milagreiros por todos os lados, em cada canto e em cada esquina. São pessoas que passam a ideia de que, supostamente, basta uma palavra sua para que Deus imediatamente opere maravilhas. Diria que se pode notar até uma certa inversão dos papeis: não é Deus quem lhes diz o que fazer e como proceder; são eles que determinam a Deus o que e quando fazer, e esse que e quando lhes estariam disponíveis para uso pessoal a qualquer momento, bastando para tanto que assim o desejem.

Por isso digo que tremo de medo. Não gostaria de deixar transparecer a ideia de que a fé é um caminho fácil. Talvez porque a minha jornada em busca da consolidação da fé venha se mostrando um caminho árduo, tortuoso, difícil e cansativo, desconfio tanto dos que querem fazer crer que a operação de maravilhas é coisa fácil e simples.

Pois afirmo que não é. Todo ser humano, em maior ou menor grau, de alguma forma e em algum momento de sua vida foi ou será vítima do autoengano.  Ninguém pode arvorar-se o direito de dizer que tem cem por cento consciência do que faz e das decisões que toma. Existe algo que nos determina e que nunca se dá a conhecer totalmente, levando-nos, não raro, a considerações equivocadas.

Refiro-me ao inconsciente, sobre cujo conteúdo ninguém tem absoluto conhecimento e controle. Por isso qualquer um pode se tornar uma presa fácil de seus desejos e fantasias que apenas muito sorrateiramente se fazem notar. Mas quando isso acontece, ou seja, quando eles se fazem notar, o dano e os estragos causados podem atingir uma magnitude assustadora, abalando severamente os alicerces em que uma vida se estruturou.

Quando se trata de questões relativas à fé, então, o risco que se corre é muito grande. É que a fé mexe com dois aspectos muito delicados do ser humano: as emoções e a razão. Por que é tão difícil discutir convicções religiosas, a ponto de ter-se tornado um dito dos mais conhecidos o que afirma que “religião e política não se discute?” Exatamente porque na fé, fundamento maior de qualquer religião, há um elemento emocional muito denso envolvido.

A par disso, há que considerar-se ainda o segundo aspecto acima apontado, a razão, outro componente extremamente delicado da questão. Uso aqui esse vocábulo com prudência. É preciso, antes de tudo, deixar claro o que quero expressar quando associo a fé à razão. Ao fazê-lo, estribo-me na seguinte premissa: por mais que se queira provar e demonstrar racionalmente a fé, sempre restará um que de irracionalidade que lhe escapa. Isso quer dizer que aquilo que é objeto da fé nunca é totalmente demonstrável nem totalmente explicável, motivo pelo qual lhe atribuo um certo traço de irracionalidade. Entra-se, aqui, na dimensão do mistério, que só pode resolvido existencialmente, ou seja, pela experiência. É aí que cabe dizer: somente poderá aquilatar sua veracidade quem vivenciou a experiência.

Com isso retornamos ao início, àquilo que é objeto desse texto: o poder de mediação de Nossa Senhora  e as maravilhas que ela opera na vida de seus devotos por meio das graças que lhes prodigaliza nas ocasiões mais periclitantes. O valor e o alcance dessa mediação somente poderá aquilatar quem o tiver provado por experiência própria. Não adianta tentar aduzir motivos e razões, pois sempre restará algo que foge à tentativa de uma explicação lógica dos fatos.

Repitamos, pois, com Maria, as belas palavras do Magnificat: “O Senhor fez em mim maravilhas, Santo é o seu nome” .    

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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