No parágrafo que abre o livro “História do ateísmo: os descrentes no mundo ocidental, das origens aos nossos dias”,  George Minois, historiador das mentalidades religiosas, indaga: “Uma história da descrença [incroyance] e do ateísmo, numa época em que se proclama por toda parte a ´volta da religião`, a ´revanche de Deus` e o ´reencantamento do mundo`, seria uma provocação, um ato de inconsciência, um arcaísmo ou um delírio?”(p. 1) concluindo, no capítulo final da obra: “A civilização do ano 2000 é ateia. O fato de ainda falar de Deus, Alá, Iavé ou outros não muda nada, porque o conteúdo do discurso não é mais religioso, mas político, sociológico, psicológico. O próprio sagrado deixou de existir; nem o homem, que era visto no século XIX como sucessor de Deus, tomou o seu lugar. Basta ver como ele é tratado, como é manipulado, como é martirizado, para se convencer de que a humanidade não foi divinizada. No naufrágio generalizado dos valores, resta apenas um sagrado irredutível: eu. E é em última instância no eu que teremos de nos alicerçar para construir uma nova racionalidade” (p. 730).

Em que pese a consistência dos argumentos aduzidos pelo autor, custa-me aceitar que devamos desistir dessa dimensão tão vital para o ser humano sintetizada na palavra sagrado. Admitamos ou não, ela continua mais presente do que se poderia supor. Considere-se, por exemplo, o halo de sacralidade experimentado pelos católicos ao longo dessa semana, por ocasião da celebração dos cem anos das aparições de Fátima. Antero de Figueiredo expressou-o de forma lapidar no livro “Fátima: graças, segredos, mistérios”, ao comentar a representação iconográfica de Nossa Senhora de Fátima, em que interagem as dimensões natural e sobrenatural: “Duas naturezas distintas? Sim, mas unidas: a Vida é composta de vida finita e de vida infinita, ambas postas, visíveis e invisíveis, no mesmo painel da existência. Díptico humano e divino, eis o quadro que sintetiza todo o anelo do fraco que se arrima ao forte; todo o apelo da criatura ao Criador: – aquela sofreguidão do espírito à Beleza, aquele suspiro de alma pelo Ideal, aquela transfiguração do ser em Deus” (p. 15).

Para alguns teólogos, a fé é fruto da graça; para outros, trata-se de uma decisão pessoal, um ato volitivo e livre, portanto. Para mim, apenas um leigo, não é uma coisa nem outra, resultando, antes, de uma interação entre ambas. Não conseguiria viver de outra forma que não amparado na convicção de que o sagrado é um dado real tanto quanto o mundo material em que vivemos e nos movemos. Talvez ao assumir tal perspectiva, eu esteja apostando numa ilusão. Que seja. Ainda assim, é uma ilusão que tem me proporcionado um olhar sobre a vida que lhe confere um colorido diferente, posto que transverberado pelo influxo dessa Beleza de que fala Antero de Figueiredo.   

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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