Papai,

Postado em silêncio diante do computador, eu buscava palavras para iniciar um texto que eu pretendia resultasse num perfil do senhor. Com que palavras iniciar? Foi então que lembrei do Livro da Vida, a autobiografia de Santa Teresa D´Ávila. Na primeira frase do livro Santa Teresa escreve: “Não fosse eu tão ruim, bastaria ter pais virtuosos e tementes a Deus para que fosse boa”. Ao afirmar isso, a santa quis dizer que o simples fato de alguém ter pais virtuosos e tementes a Deus já é suficiente para fazer dela uma pessoa boa. Logo a seguir, ela passa a falar de seu pai, descrevendo-o com as seguintes palavras: “Meu pai era um homem muito caridoso com os pobres (…) Era muito sincero. Ninguém jamais o viu praguejar ou murmurar. Era de extrema honestidade”.

Pois bem, essas palavras se enquadram com tal exatidão num texto que pretende expressar um pouco das suas características, que achei que Santa Teresa, de quem há muitos anos me fiz discípulo e devoto, não se importaria se eu as tomasse emprestadas para citar aqui. Porque assim era o senhor, um homem de grande compaixão pelas pessoas, especialmente pelos desvalidos. Essa característica sua foi patenteada de forma muito bela no relato que ouvi de minha irmã na manhã de sábado passado. Eu estivera ao lado do senhor, velando-o, até as quatro horas da madrugada, quando Naza me levou pra casa pra descansar um pouco. Por volta das oito horas, quando já me preparava pra retornar para a funerária onde seu corpo estava sendo velado, Tereza Emília chegou e falou pra mim: “Éi, tu precisas ver a quantidade de pessoas vindas dos distritos. Tem gente da Tuína, da Várzea da Cruz, da Meruoquinha, do Remédio… Muitos idosos, aquelas pessoas simples, muita gente chorando, e lamentando a falta que o papai vai fazer”.

Pouco depois, era a Lena que chegava e me falava duma senhora que se aproximou dela e falou: “Minha filha, com a morte do seu Zé nós agora vamos ficar como passarinho solto no mato”. Antes essas palavras, inferi que ela quisera dizer que se sentia, a partir de agora, como um pássaro sem saber em que galho pousar para buscar abrigo.

Teria muitas outras histórias para contar aqui sobre o que vi e ouvi de pessoas que foram lhe prestar uma última homenagem naquela manhã. Mas para não me alongar, citarei apenas mais uma. Na hora de sair para a Igreja, onde seria celebrada a missa de corpo presente, causou impressão a muita gente a figura de um homem alto, forte, de pele bem curtida pelos anos, postado ao lado do féretro, esboçando um movimento que a alguns dos presentes causou estranheza: com a mão direita tocava a certos intervalos cada dedo da mão esquerda. Como nós, seus filhos, tentássemos nos aproximar e o homem ocupasse um espaço bem ao seu lado, a gerente da funerária pediu-lhe que se afastasse um pouco, pois os filhos queriam se despedir. Ante essa solicitação, ele retrucou: “Eu estou rezando um terço para o seu Zé”. Somente então, eu, que me encontrava mais próximo dele, entendi o gesto estranho. Naquele momento, senti um afeto tão grande por aquele homem: na verdade, ele estava usando as mãos como rosário para rezar um terço para o senhor, papai. Mais tarde, quando comentamos o fato entre nós lá em casa, fui informado de que se tratava do seu Raimundo Moisés, um dos seus fregueses mais antigos, que conheço desde criança, a quem não via há muitos anos. Senti uma vontade enorme de reencontrá-lo pra lhe dar um afetuoso abraço de agradecimento.

Foram essas, papai, as pessoas que foram lhe prestar as últimas homenagens. Gente simples do povo, gente humilde, gente com quem o senhor interagia tão bem e com quem sentia tanta afinidade. Só isso já seria suficiente para justificar a sua existência. Mas o senhor foi além, esmerando-se no carinho e no cuidado que sempre demonstrou para com a mainha, a quem devotou especial atenção, nunca lhe deixando faltar nada, sempre atento e cuidadoso com ela devido à fragilidade da sua saúde, com quem permaneceu casado por mais de cinco décadas, numa feliz união conjugal.    

Some-se a isso o esmero que o senhor demonstrou no desempenho da difícil e espinhosa missão de pai. O senhor não mediu esforços para que tivéssemos uma educação da melhor qualidade, incentivando-nos sempre a estudar para que obtivéssemos uma boa colocação na vida. Mas além da educação formal, os verdadeiros ensinamentos para a vida não foi nos bancos de uma escola que os obtivemos. Para aprender sobre os autênticos caminhos e meios para uma vida digna e virtuosa não seria necessário que nós, seus filhos, frequentássemos nenhuma escola, por melhor que ela fosse. Porque, em casa, nós tivemos o privilégio de contar com um autêntico mestre, que ensinava muito mais pelo exemplo do que pela palavra: o senhor, papai. O senhor foi o melhor mestre que tivemos. Quem me dera pelo menos me aproximar da envergadura moral que o senhor demonstrou ao longo dos seus quase oitenta e dois anos de vida. No entanto, não passo de um mero aprendiz, tentando aplicar na minha vida pelo menos um pouco do muito que o senhor nos ensinou.

Teria muito mais a dizer, mas vejo que já me estendi demais e não posso abusar da paciência e generosidade dos que aqui vieram para louvar a Deus e agradecer por sua imensurável bondade em nos conceder a graça de ter vivido com uma pessoa do quilate do senhor. Toda minha gratidão pelo imenso privilégio que Deus me concedeu ao me dar o senhor como pai aqui na terra. Que Nossa Senhora de Fátima, de quem o senhor sempre foi um ardoroso devoto, o acolha junto ao Pai e ao seu filho e nosso mestre Jesus Cristo. E que de lá o senhor interceda por nós, enquanto aguardamos o momento em que definitivamente nos encontraremos para um abraço que terá o tamanho da eternidade.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles