1. Reunião de folhas ou cadernos, soltos ou cosidos, ou por qualquer outra forma presos por um dos lados, e enfeixados ou montados em capa.

Aurélio Buarque de Holanda

[Holanda, Aurélio Buarque de. Minidicionário Aurélio. 1ª. ed., 3ª reimpressão. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1977. Verbete: Livro, p. 295.]

Levantei-me na manhã deste 23 de abril de 2021 cheio de expectativas. É que havia sido convidado para participar de uma reunião cujo tema seria um objeto que, sem exagero, posso dizer que é uma das coisas que ainda são capazes de manter minha alegria de viver: o livro. Organizada pelo juiz Dr. Carlos Alexandre Bötcher, Membro do Comitê do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a reunião, marcada para as 10 horas, teria como foco a discussão sobre bibliotecas, gestão e preservação de acervos bibliográficos. Ao abrir a reunião, o Dr. Bötcher disse que gostaria de registrar uma feliz coincidência, pois lembrara que hoje se celebra o Dia internacional do livro e dos direitos autorais.  Pois bem, coerente com o conceito que serviu de inspiração para o título deste blog, onde o Dr. Bötcher usou a palavra coincidência eu substituiria por sincronicidade. Os assuntos abordados, a partir da abertura, foram tão envolventes que uma reunião planejada para durar uma hora e meia estendeu-se por duas horas e quarenta e cinco minutos.

Em que pese a relevância de tudo o que foi abordado, a mim me causou especial emoção ouvir o Dr. Claudemiro Avelino de Souza, juiz do Tribunal de Justiça de Alagoas, discorrer sobre a formação de sua coleção privada de História da Justiça. Poucas coisas são tão empolgantes ou envolventes quanto escutar um bibliófilo falando de seus livros. É indescritível. O prazer com que ele fala de cada nova aquisição, das andanças pelos sebos, das obras raras, da emoção experimentada quando da aquisição de um exemplar autografado por determinado autor ou de um manuscrito, enfim, são tantas as histórias que um bibliófilo tem para contar, que a vontade que se sente é de poder fazer um tour por sua biblioteca examinando cada exemplar. Inclusive, o Dr. Claudemiro disse, no final, que gostaria de mostrar algumas de suas raridades, mas não o faria pela exiguidade do tempo.

Finalizada a reunião, imediatamente me veio a ideia de escrever um pequeno texto para celebrar o dia em que se homenageia este objeto maravilhoso. Comecei a lembrar das minhas histórias com os livros. Olhando nas estantes, as histórias foram surgindo e as que eu usaria neste texto já foram sendo selecionados a medida em que eu pegava os exemplares. O primeiro que retirei da estante foi um exemplar do Minidicionário Aurélio, envelhecido e desgastado pelos muitos manuseios que dele fiz em outros tempos. Em 1980, ano em que vim morar em Fortaleza, a Livraria Educativa convidou o Aurélio Buarque de Holanda para uma palestra seguida do lançamento de uma nova edição do seu dicionário. Ao saber disso, fiquei morrendo de vontade de adquirir um exemplar para que ele o autografasse. Entretanto, minhas parcas economias só deram pra adquirir o “Minidicionário”. Lembro como se fosse hoje de o quanto me senti encabulado, com aquele livro pequeninho numa fila em que todos ostentavam o “Aurelhão”, à espera do ansiado autógrafo. Durante a palestra, o autor contou uma anedota que nunca esqueci. Disse que, no colégio, perguntaram ao seu neto o que o avô dele fazia. Com a espontaneidade e desenvoltura próprias de uma criança, o menino respondeu: “Ele não faz nada não, passa o dia todo lendo e escrevendo”. Guardo ainda com muito carinho o meu “Aurelhinho” autografado. Com ele adquiri o hábito de consultar o dicionário. Ainda hoje o “Aurelhão”, adquirido posteriormente, não sai do meu birô, mesmo que vez por outra o google leve a melhor, devido á pressa e à tentação da comodidade a que nem sempre consigo resistir.

Uma outra história sobre livros é também já meio antiga, remontando ao ano de 1981. No ano anterior a Editora Vozes havia publicado o livro “Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino”, do grande bardo cearense Patativa do Assaré. Adquiri imediatamente um exemplar. Em 1981, descobri que o autor faria uma palestra na Faculdade de Direito da UFC. No dia do evento, muito cedo eu já me encontrava no auditório, com o livro em mãos. Quando vi o Patativa entrar conduzido por um rapaz, sem nenhuma cerimônia me levantei e perguntei discretamente: “Será que o Patativa autografaria este livro para mim?” O rapaz se virou para ele e falou: “Patativa, este rapaz é um fã do senhor. Ele está perguntando se o senhor poderia autografar o seu livro para ele”. Patativa, com muita delicadeza, já me estendendo a mão, respondeu: “Claro!” a seguir, tirou os óculos escuros que estava usando, posicionou o livro próximo ao rosto e, apoiando-o no ombro, falou: “Os outros botam os óculos pra escrever, eu tiro”. E desenhou, letra por letra, com todo cuidado: “Antônio Gonçalves da Silva (Patativa do Assaré) Fortaleza 6-11-81”. Troquei mais um aperto de mão com o Patativa e voltei, alegre como uma criança que ganha um brinquedo muito desejado, para a plateia para esperar a palestra.

A última história que narrarei é mais recente. Há alguns anos fui convidado pela Desembargadora Gizela Nunes da Costa, então Vice-presidente do TRE-CE, para fazer uma palestra na Academia Brasileira de Hagiologia sobre um livro que eu havia publicado em 2001, narrando a viagem que fiz de Lhasa, no Tibet, a Kathmandu, no Nepal, pela cordilheira do Himalaia, peregrinando por templos e mosteiros budistas e hinduístas. Enfatizei, na minha fala, as semelhanças e os pontos de convergência entre as religiões abordadas, inclusive o Cristianismo. Quando terminou a palestra, o poeta Horácio Dídimo, que era membro da Academia e fora à palestra acompanhado de sua esposa, levantou-se, pediu o microfone e falou: “Vasco, eu e minha esposa aprendemos muito com a sua palestra. Nós não conhecíamos nada sobre o Tibet. Você é um pontífice na acepção etimológica da palavra, um construtor de pontes entre as religiões”. Exultei! Meu Deus, foi o maior elogio que recebi em toda minha vida, pois fomentar o diálogo inter-religioso sempre foi o grande foco das minhas aulas quando fui professor de História das Religiões. Em 2016, compareci ao lançamento do “Livro de Sonetilhos”, lançado pelo autor. Na primeira página, ele escreveu: “Para Vasco Arruda, nosso pontífice, com a homenagem e a amizade de Horácio Dídimo. Junho 2016”. Nem acreditei quando li a dedicatória. Na verdade, de todos os meus livros, provavelmente seja este o de maior valor afetivo.

Para concluir, quero transcrever o trecho de um lindíssimo poema do Patativa do Assaré, em que ele atribui a salvação a um autor pelo simples fato de ter escrito um livro:

“Eu nasci aqui no mato, / Vivi sempre a trabaiá, / Neste meu pobre recato, / Eu não pude estudá. / No verdô de minha idade, / Só tive a felicidade / De dá um pequeno insaio / In dois livro do iscritô, / O famoso professô / Filisberto de Carvaio.  //  No premêro livro havia / Belas figuras na capa, / E no começo se lia: / A pá – O dedo do Papa, / Papa, pia, dedo, dado, / Pua, o pote de melado, / Dá-me o dado, a fera é má / E tantas coisa bonita, / Qui o meu coração parpita / Quando eu pego a rescordá.  //  Foi os livro de valô / Mais maió que vi no mundo, / Apenas daquele autô / Li o premêro e o segundo; / Mas, porém, esta leitura, / Me tirô da treva escura, / Mostrando o caminho certo, / Bastante me protegeu; / Eu juro que Jesus deu / Sarvação a Felisberto”. (Patativa do Assaré. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino. Ed. Vozes: Petrópolis, RJ: 1980, p. 17).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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