Da democracia grega aos dias de hoje, os espaços públicos de poder, foram – e ainda são – ocupados majoritariamente por homens. O poder sempre foi masculino, assim como a política sempre foi, para nós, um não lugar. Ou também podemos dizer que sempre existiu, na política, um não lugar reservado às mulheres.

Roberta Laena

[Laena, Roberta. Fictícias: candidaturas de mulheres e violência de gênero. – Fortaleza: Editora Radiadora, 2020, p. 19]

Não é raro leitores, dentre os quais me incluo, se sentirem impelidos a ler uma obra pela impressão que o título lhes causou. Mas o melhor disso são as agradáveis surpresas que, não raras vezes, tal motivação nos proporciona. Foi o que me aconteceu com “Fictícias: candidaturas de mulheres e violência de gênero”. Desde que soube da publicação desse livro, me senti cativado pelo título. Parece que ele nos faz imaginar uma situação que beira o paradoxo. A mim me fez pensar em candidaturas que, embora efetivadas, por algum motivo talvez se adequem mais à ficção que à realidade. Para desvendar o que se esconde por trás do título de uma obra, o melhor caminho é lançar-se à sua leitura. Foi o que fiz como forma de saciar minha curiosidade a respeito do livro mencionado.

Depois de uma introdução em que dá a chave do assunto a que se dedicará ao longo da obra, as candidaturas políticas femininas no Brasil, a autora, tomando como referência obras literárias e alguns estudos de cunho sociológico e congêneres, contextualiza o tema traçando um itinerário da história do silenciamento da mulher: “Na antiguidade, a situação não foi diferente. O discurso, a esfera pública e o poder eram dos homens e definiam a masculinidade, porque éramos consideradas seres incompletos e defeituosos. Na Odisseia, de Homero, Telêmaco disse à mãe, quando ela se manifestou sobre uma música cantada no saguão de sua casa: “discursos são coisas de homem, de todos os homens”. Foi o primeiro caso encontrado na literatura ocidental a revelar o nosso silenciamento como verdade estabelecida desde esse período, como destaca Mary Beard, em Mulheres e Poder: um manifesto” (p. 31).

Segue-se um capítulo intitulado “O não lugar da política: as candidaturas fictícias de mulheres na disputa eleitoral brasileira”, com a apresentação de dados estatísticos que constituem um material valiosíssimo para estudiosos do assunto ou mesmo para qualquer pessoa que tenha interesse em se inteirar melhor sobre a questão.

Para mim, em que pese o interesse e o prazer que a leitura da obra me proporcionou da primeira à última página, eu destacaria como o que mais me cativou aquele em que Roberta Laena, autora da obra, fala da experiência que motivou o seu estudo. E aqui vale destacar uma peculiaridade que confere um valor extra ao trabalho. A autora partiu de um contato direto com as protagonistas da controvertida questão das candidaturas femininas no Brasil. Desde o meu tempo de faculdade tenho fascínio por esse tipo de estudo, em que o pesquisador ou pesquisadora faz-se, de certa forma, também protagonista. Rememoro sempre com muito prazer e saudade uma atividade desenvolvida para a cadeira de Psicologia Social, em que tive a oportunidade de ter contado direto com pessoas que vendiam e trocavam mercadorias as mais diversas numa feira que ficou famosa em Fortaleza sob a alcunha de “Feira dos Malandros”, que acontecia na Praça da lagoinha.

A propósito, vale citar um trecho em que Roberta Laena, consciente tanto da pertinência quanto da relevância da metodologia utilizada em sua pesquisa, faz uma observação extremamente importante, e que tem o condão de ser também um alerta: “Infelizmente, a pesquisa empírica no meio jurídico ainda é rara. “O que observamos em nossa cotidianidade é a transmissão da ideia de um Direito formalista, positivista, dogmático, distante do universo da pesquisa empírica” (IGREJA, 2017, p. 11). Ou, parafraseando Warat (2000), há um senso comum teórico dos juristas da pesquisa em Direito que leva as investigações para o campo da teoria e da argumentação, mesclando as distintas correntes doutrinárias com a análise de leis e de decisões judiciais, e, por vezes, de dados estatísticos. E não se trata apenas de uma praxe reiterada somada à ausência de prática em pesquisa de campo; há, de fato, uma espécie de rejeição ou não reconhecimento da validade da investigação empírica, como se este fosse um modo de pesquisar menos valorado e sem tanta credibilidade, como cheguei a ouvir de professores, em evento público realizado em 2017, na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro. Não obstante esse panorama, penso que a empiria tem muito a nos ensinar na produção de um conhecimento jurídico mais próximo da realizada que nos permeia” (p. 200).

Pois bem, no caso do livro aqui comentado, a autora narra com as seguintes palavras o que se pode considerar o momento em que, tocada pela emoção tanto quanto pelo interesse intelectual, teve o insight para o que viria a converter, posteriormente, em objeto de pesquisa acadêmica: “Inicio a narrativa do exato momento da descoberta, quando soube, pela primeira vez, que mulheres são candidatas fictícias apenas para colaborar com os partidos políticos no preenchimento da cota de gênero nas eleições proporcionais. As Eleições Municipais se aproximavam e estávamos no período de registro de candidaturas, durante o qual partidos, candidatas e candidatos protocolizam seus requerimentos com vistas à participação no processo eleitoral. Por ocupar, à época, o cargo de Chefe de Cartório de uma zona eleitoral do Estado do Ceará, e por se tratar de pleito municipal, uma das minhas atribuições consistia em receber e verificar a documentação apresentada e iniciar a tramitação processual, possibilitando a apreciação, pelo juiz e pela juíza eleitoral, dos requisitos necessários ao deferimento das candidaturas. Em razão disso, todas as pessoas envolvidas nos registros me procuravam para tratar das questões atinentes aos seus respectivos processos” (p. 201).

Segue-se o relato de uma pretensa candidata, uma certa Maria, que se dirigiu ao cartório eleitoral a fim de requerer o registro de sua candidatura. Foi essa mulher, uma Maria como tantas outras que procurariam a Justiça Eleitoral com o mesmo objetivo, que sensibilizou a autora para a importância e, mais que isso, a gravidade do que estava acontecendo com as candidaturas políticas de mulheres. Ao longo do capítulo dedicado ao assunto, Roberta Laena relata histórias de outras sete Marias que ela, a muito custo, conseguiu entrevistar, quando transformou a situação vivenciada no cartório em objeto de estudo acadêmico. A leitura dos relatos e conclusões a que chegou provoca no leitor um misto de emoção e indignação. Mas não vou entrar aqui no detalhamento de tais relatos, pois não quero roubar ao leitor ou leitora o prazer de experimentar, pelo contato direto com o livro, o prazer da leitura de histórias tão tocantes e pungentes.

A propósito da obra gostaria de mencionar, ainda, a inspirada metáfora utilizada por Izabel Gurgel ao comparar a tecitura do texto da autora ao trabalho da rendeira cearense: “Roberta Laena olha, pois, as Marias do Ceará como fazem as rendeiras no seu ofício: enlaces, cruzamentos, torções se preciso for, seguindo fios já tecidos, abrindo possibilidades novas de combinações e ajustes, arremates. O desenho final se sustenta como se sustenta o cotidiano: tendo alguém que faz, ponto por ponto, o minucioso trabalho, quase sempre invisível (no caso do cotidiano como ofício de gestão a cargo das mulheres)”. E conclui, com uma sugestão: “Ler é escutar. Escute bem cada vida que fala através da escrita de Roberta Laena. É sempre da vida que se trata” (texto inserido nas orelhas do livro).

Roberta Laena é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR e Analista Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará.

Concluo com a citação de um trecho do poema “nós, fictícias”, publicado originalmente em outro livro, que a autora transcreve na última página da obra comentada: “As coisas sempre foram: eles, autênticos, nós, fictícias e / o não fazermos parte, não sermos ouvidas, não termos canto. / a ausência feita natural, como se natural, tornada natural. a / casa e o útero como destinos, a política como um não lugar”. (Roberta Laena, in Flor de Resistência, vol. 2, Editora Radiadora, 2020).

 

 

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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