POR LUCAS MOTA (entrevista de agosto de 2018 publicada no Jornal O POVO)

Das colheitas de arroz e feijão até o protagonismo nos gramados de futebol. José Edson Barros da Silva, o Edson Cariús, superou as dificuldades financeiras que quase lhe fizeram abandonar o esporte para se tornar artilheiro e destaque da campanha do Ferroviário até o título da Série D do Campeonato Brasileiro. Em entrevista exclusiva ao O POVO, o atacante narra sua trajetória, a época da infância onde se dividia entre jogar bola e ajudar os pais na agricultura, o trabalho como vendedor de moto e o auge nas quatro linhas.

O POVO – Como foi sua infância em Cariús?

Edson Cariús – Minha infância sempre foi na minha cidade, em Cariús. Foi um pouco difícil porque eu vim da agricultura, trabalhava com meus pais. Mas sempre quando tinha tempo jogava bola com os amigos, na escola. Aquilo começou a me dar o desejo de ir pelo futebol. Sempre foi meu sonho ser jogador de futebol. As coisas começaram acontecer, e aconteceram de forma positiva e pude realizar meu sonho.

O POVO – E você ajudava na roça?

Edson Cariús – Trabalhava na roça com meu pai. Hoje meu pai não trabalhava mais porque as coisas começaram a melhorar. A gente não iria deixar numa época dessa trabalhando na roça. Mas sempre trabalhei na agricultura com meu pai, ajudando ele nas plantações de milho, arroz e feijão. Isso era um trabalho digno, aprendi muito a valorizar as coisas, que tinha que batalhar bastante para conseguir alguma coisa na vida.

O POVO – Você morava com seus pais?

Edson Cariús – Morei até os 23 com eles. Ajudava da melhor forma possível. Depois que saí da agricultura, arrumei outro emprego e passei a ajudar eles um pouco mais. Sei que eles precisavam da minha ajuda e foram fundamentais para que eu chegasse onde cheguei.

O POVO – Você tem irmãos?

Edson Cariús – Tenho seis irmãos. Todos homens. São pessoas também que foram fundamentais na minha carreira. Me ajudam muito e torcem até hoje. Nesse jogo contra o Treze (1º jogo da final), eles deslocaram de Cariús para Fortaleza, 400 km, para assistir. São pessoas que estão me ajudando e são tudo. A minha família é a base de tudo.

O POVO – Nenhum irmão seguiu carreira no futebol?

Edson Cariús – Só eu mesmo que fui pelo futebol. Os outros todos residem em Cariús, têm seus negócios e ainda hoje estão por lá.

O POVO – Quem te inspirou e motivou para passar a gostar de futebol? Como você começou a jogar bola?

Edson Cariús – Olha, no início, comecei a jogar através de um primo meu que incentivava a jogar futebol. Eu não gostava muito. Por eu ser do interior do Ceará, eu tinha um pouco de vergonha de estar no meio do povo, receio. Mas isso foi mudando a medida que ele foi me levando para os jogos. Comecei a gostar de futebol e a ver que poderia realizar meu sonho. Tinha uns 12 anos. Estava começando a despertar para o futebol. Jogava descalço sem material adequado. São momentos que ainda hoje eu lembro e vai ficar marcado por toda minha vida.

O POVO – Nessa época de jogar descalço, qual foi o lugar mais inusitado de um “racha”?

Edson Cariús – Foi nos jogos interclasses, lembro bem. A gente jogava futebol de salão e teve um jogo às 13 horas. E lá em Cariús a quadra não era coberta, era ao ar livre. Acabou queimando meus pés. Mas como falei, são momentos que vão ficar marcados, que valeu a pena passar por isso para chegar até aqui (risos).

O POVO – Qual foi o time que você iniciou nas categorias de base?

Edson Cariús – Foi em um time da minha cidade, o Struggle. Não é um time profissional, mas tem tudo legalizado. Falta apenas ter mais apoio para colocar em competições oficiais. Comecei a jogar lá. É um time formado pela minha família. Eles me chamaram para participar. Tinha 16 anos, disputei competições locais, foi minha primeira experiência em campo e peguei gosto de vez pelo futebol de campo.

O POVO – Então tua família gosta mesmo de futebol…

Edson Cariús – A família sempre gostou de futebol. Esse time participa de muitas competições, inclusive, revelou eu e o Igor, que está no Paraná. Se trabalha muito com categoria de base, pega jovens de Cariús, de cidades vizinhas, e começa a lapidá-los e tirá-los do meio da rua. É um projeto que hoje eu tenho prazer de estar ajudando, assim como o Igor. A gente ajuda porque vê que tira muitos jovens da rua.

O POVO – Você teve um período de pausa na carreira. Como foi isso? Você pensou em abandonar a carreira?

Edson Cariús – Em 2008, teve uma peneira sub-18 do Icasa lá em Iguatu, em julho. Como eu faria 19 anos em outubro, fui reprovado em um primeiro momento pela comissão do Icasa, que os observadores eram o Raimundinho e o Washington Luiz. Seriam dois dias de peneira. No primeiro dia, fui reprovado. No outro dia, fui de novo. Quando fui pegar o material, era outra pessoa que estava entregando. Ele perguntou quantos anos eu tinha e respondia que tinha 17. E o Raimundinho estava apitando e o Washington na arquibancada observando. Eles me colocaram para jogar e não lembraram que eu tinha vindo um dia antes. O Raimundinho parou o treino com 10 minutos e me chamou porque eu tinha feito três gols. Ele perguntou quantos anos eu tinha, disse 17, e pediu para que eu saísse e esperasse. Depois, ele veio conversar comigo. Falei a verdade. ‘Professor, não tenho 17. Ontem eu vim, não pude fazer porque já completo 19 em outubro’. Mas aí ele pediu pra eu ficar e me levou para o sub-20 do Icasa, no mesmo ano. Quando cheguei lá já tinha muita gente na base e acabei sem espaço. Aquilo acabou me chateando e voltando para minha cidade porque vi que não iria ter espaço. Pensei em desistir. Foi quando voltei para Cariús e arrumei emprego.

O POVO – E como foi esse momento?

Edson Cariús – Comecei a trabalhar, a ganhar meu próprio salário e ajudar minha família. Acabei desgostando do futebol. Fiquei três anos sem jogar.

O POVO – E voltou para Cariús para trabalhar com o quê?

Edson Cariús – Voltei decidido a não seguir mais no futebol. Via que não iria ter espaço. Consegui um emprego de vendedor de moto. Foi um emprego que me marcou muito e fiz muitas amizades. Foi meu primeiro emprego, recebi meu primeiro salário e pude ajudar minha família com aquele dinheiro. Foram coisas que me fizeram crescer na vida. Era um trabalho digno, mas muito difícil. Não é fácil trabalhar como vendedor de moto. Você tem que bater de porta em porta e leva muito não. E em 2012 o Iguatu colocou o time profissional na 3ª divisão. Recebi o convite do próprio Washington Luiz para que eu pudesse ajudá-lo no Iguatu. Foi um momento que parei e refleti se valeria a pena, porque não sabia se eu iria seguir no futebol, poderia ser só dois ou três meses no futebol e tinha que largar o meu emprego que era algo garantido. Conversei com meus pais e irmãos. Eles foram fundamentais para que eu voltasse ao futebol. Perguntaram qual era o meu sonho. E eu disse que era ser jogador. Eles mandaram seguir o meu sonho, que não desistisse no primeiro obstáculo. Fui para o Iguatu, sou muito grato, porque me abriu as portas. A partir desse momento, as coisas começaram a acontecer de forma positiva.

O POVO – E como surgiu esse convite do Iguatu? Você passou três anos longe e só batendo “racha”?

Edson Cariús – Estava há três anos sem jogar. Estava acima do peso, só rachava, quando o Iguatu me colocou na 3ª divisão. O treinador era o Washington Luiz, que já me conhecia. Algumas pessoas do Iguatu já me conheciam por eu jogar racha. E fizeram essa ponte para eu voltar. Na época, era uma ajuda de custo que me pagavam uns R$ 600 reais para que eu pudesse estar lá com o grupo. Eu arrisquei e fui em busca do meu sonho. Graças a Deus, através do Washington, do pessoal da diretoria que me ajudaram, as coisas começaram a acontecer. Foi minha estreia pelo profissional, em 2012.

O POVO – E o que passava pela tua cabeça, já que teve que largar o emprego de vendedor no qual você ganhava mais?

Edson Cariús – Foi uma decisão difícil. Poderia ser só três meses no futebol e não ter sequência. E trabalho que tinha estava seguro, ganhava muito além do que iria ganhar no Iguatu. Se não fosse minha família apoiando, eu não teria voltado para o futebol. Por mim, eu já achava que não dava mais, até porque estava com 22 anos. Acabou que foi uma decisão acertada pela minha família.

O POVO – Nos tempos de vendedor de moto, teve alguma história curiosa?

Edson Cariús – Com cinco dias que estava trabalhando, por eu não ter nenhuma experiência, cheguei ao trabalho, e lá não poderia entrar de barba, tinha que estar feita. Quando cheguei, o gerente mandou eu voltar pra casa para tirar a barba e depois voltar para o trabalho. Através do trabalho, eu aprendi até a dar bom dia para os colegas de trabalho e clientes.

O POVO – O que representa essa temporada no Ferroviário? O que mudou na tua vida?

Edson Cariús – Quando tive a oportunidade de vir para o Ferroviário, tinha outras propostas até melhores do que a do Ferroviário. Mas acabei vindo porque sei que o Ferroviário tem história e peso na camisa. O que imaginava que pudesse acontecer aconteceu. Fazer uma grande temporada com Ferroviário e uma grande Série D para que as coisas pudessem acontecer de forma positiva e aparecessem coisas melhores. Eu resumiria para você que o Ferroviário foi tudo pra mim. Sei que partir deste momento minha vida irá mudar.

O POVO – Qual foi o momento você que teve a noção de que iria longe na Série D e como foi disputar essa competição?

Edson Cariús – A sensação de disputar Série D foi incrível. Foi a minha primeira participação em uma competição de Campeonato Brasileiro. Me sentia realizado por disputar um Campeonato Brasileiro. O momento que vi que a gente iria chegar foi contra o Altos. A gente empatou o primeiro jogo aqui. Quando chegou lá no interior do Piauí, que a gente fez um grande jogo, eu conversava com colegas próximos e falava que a gente ia chegar e subir esse time. O time se fechou e viu que poderia chegar. E foi passando de fase, alcançando os resultados e as esperanças foram aumentando.

O POVO – Qual foi a maior dificuldade na competição?

Edson Cariús – Não foi nem as viagens, mas o campo para jogar. Jogamos em dois campos muito difíceis, no campo do Cordino, no Maranhão, e do 4 de Julho, Piauí. Era mesmo que estar jogando futebol amador. Me lembrei naquele momento da minha infância nos campos de Cariús, no terrão. Foram essas dificuldades que fizeram a gente crescer e se fechar para que pudesse conquistar nossos objetivos.

O POVO – Como você se sente sendo responsável direto em colocar um ponto final na seca de títulos do Ferroviário?

Edson Cariús – Esse momento representa muita coisa. Jamais imaginava que pudesse chegar num momento como esse, conseguir um acesso, o título e ser artilheiro da competição, estar entre os três maiores artilheiros do país até o momento. Poder fazer gol em final de Campeonato Brasil. É um momento maravilhoso. Agradeço tudo isso a Deus e ao Ferroviário, que abriu as portas para que eu fizesse o meu melhor.

O POVO – Você deu passe e marcou um gol no 1º jogo da final da Série D. Conseguiu dormir cedo depois desse jogo?

Edson Cariús – Fui dormir 5h30min da manhã (risos). Se sentir numa final de Campeonato Brasileiro e ajudar a equipe a fazer um grande jogo, é muito gratificante. Você sair e ver o reconhecimento do torcedor. Você para pra pensar e imagina se realmente está acontecendo ou se está sonhando. Mas quando abre os olhos, vê que é real.

O POVO – Qual foi o melhor zagueiro que você enfrentou?

Edson Cariús – De todos os zagueiros que já encontrei o mais difícil foi o Da Silva, do Cordino. É um zagueiro que não tem uma estatura alta, mas tem um tempo de bola bom e é muito leal. Jogamos quatro jogos contra o Cordino e foi o único jogador que não foi desleal comigo. Todas as bolas que ganhou, ganhou na bola, sem precisar de covardia. Tenho que parabenizá-lo pelo caráter e pela forma que joga.

O POVO – E o melhor parceiro de ataque?

Edson Cariús – Joguei com muitos jogadores bons. Mas hoje falaria em dois que estão no mesmo nível. Primeiro, o Juninho Quixadá, sem comentários. É um cara altamente inteligente, me identifiquei muito. Tem o Luís Soares também. Muita gente pensa que ele é lento, mas é excepcional e inteligente.

O POVO – Qual a tua referência e inspiração no futebol?

Edson Cariús – Hoje, eu me inspiro no Cristiano Ronaldo. Mas um cara que vejo muito e analiso os gols é o Jardel por eu ter um pouco das características que ele tinha. Antes das partidas, costumo ver vídeos de centroavantes que se deram bem no futebol para eu analisar o posicionamento. E o Jardel me chama muita atenção pelo posicionamento dele, de como ele cabeceava a bola.

O POVO – Você viu o que o Jardel falou, de que gostaria de lhe levar para o futebol europeu?

Edson Cariús – Vim ver algum tempo depois da publicação porque me mandaram. Fiquei muito feliz com as palavras dele, pelo interesse. Espero que um dia possa conhecê-lo pessoalmente. Ele venceu na vida, foi ídolo no futebol, não tem como ficar feliz de saber que tem uma pessoa como o Jardel vendo o meu potencial.

O POVO – Sobre o episódio de preconceito ocorrido na partida contra o São José, como você encarou aquele momento?

Edson Cariús – Isso me deixou muito triste. Num tempo como hoje, você vê esse tipo de preconceito. Foi o pior absurdo que já vivi no futebol, gritos de nordestinos malditos e comedores de farinha. Mas me motivou muito também para fazer na partida um grande jogo e buscar a vaga na final. A gente só lamenta, mas espera que Deus possa abençoá-los, que possam ver de outra forma e que isso não venha mais acontecer.

O POVO – Quais as tuas ambições e planos para o futuro? Sonha em jogar numa equipe nacional de maior renome?

Edson Cariús – Se eu disse pra você que não tenho ambição em jogar num time de Série A ou B, estarei mentindo. Meu sonho é chegar e conquistar muitas mais coisas. O Ferroviário está sendo fundamental para que eu possa chegar num time maior, mas enquanto esse momento não chegar vou estar no Ferroviário dando meu melhor. Algumas opiniões nos deixam tristes, de que jogador de Série D não tem condições de jogar na Série A ou B. Quem sabe jogar, joga em qualquer canto. É esperar o momento certo. Enquanto não aparece, a gente vai dando o nosso melhor.

O POVO – Pra fechar, revela uma história curiosa de bastidor com o grupo.

Edson Cariús – O Esquerdinha, há duas semanas, me ligou por volta das 23 horas. Eu estava dormindo um sono bom, cansado. Ele se passou por um repórter e ficou sete minutos me entrevistando. Eu não sabia que era ele. E quando ele falou, a gente começou a dar risada. Só assim vim perceber que era ele. A gente precisa desses momentos de alegria fora de campo também.

About the Author

Fernando Graziani

Fernando Graziani é jornalista. Cobriu três Copas do Mundo, Copa das Confederações, duas Olimpíadas e mais centenas de campeonatos. No Blog, privilegia análise do futebol cearense e nordestino.

View All Articles