Quando eu e Naza, minha esposa, recebemos os passaportes das mãos do estudante de teatro Adonai Elias, não tínhamos muita noção de aonde aquela viagem nos levaria. Na verdade, a primeira curiosidade foi tentar entender o motivo de nos terem sido entregues passaportes. Todos sabem que esse documento é exigido de quem viaja para o exterior. O problema é que na capa estava estampada em grandes letras a palavra INTERIOR. Aquela seria, pois, uma viagem ao Interior? Mas, a que Interior?

Enquanto matutávamos sobre a questão, ecos de canções bem antigas nos remeteram imediatamente a tempos de antanho. Seriam aquelas canções uma insinuação de que estávamos prestes a embarcar numa viagem ao passado, como se entrássemos numa cápsula do tempo?  

Resolvemos abrir o passaporte. Ao fazê-lo, nos deparamos com essas amáveis palavras: “Muito obrigado pela presença. Por favor, fique à vontade e receba com carinho este espetáculo. Ele é cheio de afeto, que nem o bolo das avós”.

Uma porta se abriu e fomos convidados a adentrar o recinto. Pela peculiaridade, tanto do ambiente quanto das duas figuras que recepcionavam os convidados, deu logo pra ver que estávamos tendo acesso a algo de características bem singulares. Talvez estivéssemos mesmo, sem que nos apercebêssemos, entrando numa cápsula do tempo.

Logo mais uma anciã de pele enrugada e corpo encurvado, o que denunciava o peso de muitas décadas de vida, invadia o ambiente, se dirigindo aos convidados num tom que fazia lembrar aquelas senhoras que se costumava encontrar quando nos aventuramos pelos rincões mais recônditos das pequenas cidades e povoados do interior.

Sem muita cerimônia, instalou-se numa das arquibancadas ao lado dos convidados, falou um pouco de sua história num tom que levou todos ao riso. Abriu uma sacola e começou a distribuir bolinhos entre os convidados. Minha esposa foi uma das agraciadas com o mimo da anciã, dividindo-o comigo. Aquela fatia de bolo de banana teve o condão de me remeter imediatamente aos bolos que comia em Massapê, onde nasci e passei minha infância e adolescência. Inevitável não relembrar, naquelas circunstâncias, minhas avós Emília e Teresa. Não demorou muito para que outra anciã viesse também ocupar o recinto. Apresentando-se como neta da primeira, parecia, na verdade, tão velha quanto a suposta avó. Logo que se iniciou o diálogo entre as duas, entremeado por provocações e interpelações aos convidados, também chamados a participar da conversa, não nos restaram mais dúvidas.  Ali, na Casa da Esquina, em pleno Bairro de Fátima, na cidade de Fortaleza, uma cápsula do tempo de abrira, nós entráramos e, conduzidos pelo competente Grupo Bagaceira de Teatro, embarcamos numa viagem que fez com que todos se transportassem ao universo maravilhoso da infância, quando o contato com as avós faziam da vida um universo de encantos e prazeres jamais reencontrado, a não ser em momentos mágicos como aquele que, sem que o soubéssemos, fôramos convidados a vivenciar.  

É assim o espetáculo Interior, do Grupo Bagaceira de Teatro. Com texto de Rafael Martins e direção de Yuri Yamamoto, e tendo como elenco Samya de Lavor, Tatiana Amorim, Rafael Martins e Rogério Mesquita, nenhum espectador consegue se furtar às emoções provocadas pelo retorno ao maravilhoso universo das avós. Fundado no ano 2000 e sediado em Fortaleza, esse grupo de teatro experimental pode dizer que construiu, ao longo desses dezoito anos de estrada, uma história sólida, somando ao currículo de suas produções autorais um repertório diversificado e peculiar, que tem se consolidado sempre mais no gosto do público.  

Esta manhã eu e Naza conversávamos novamente sobre a peculiaridade do bilhete de acesso ao espetáculo. Falei que havia entendido o motivo: o passaporte é uma metáfora, porque ao permitir o acesso ao espetáculo, nos remete, por meio dos universos fantásticos da imaginação e da memória, a dois diferentes lugares: as cidades e povoados do interior e, ao mesmo tempo, ao interior de si nós mesmos, onde dormitam as mais recônditas memórias da infância. Ante minha observação, Naza retrucou, dizendo que ela tinha interpretado diferente, pois eu estava esquecendo um aspecto importante. É que, no espetáculo, já quase no final, somos retirados do passado e convidados a nos projetar no futuro. Concordei. De fato, ela tem razão. Mas quanto ao artifício usado pelas atrizes para remeter a plateia ao futuro, não revelarei aqui. Fica como surpresa para os que decidirem proporcionar a si mesmos o imenso prazer de assistir Interior.  

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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