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Dizer que “Aquarius” é um retrato redondo de Recife, de Pernambuco, do Nordeste, do Brasil, não é uma hipérbole. Na verdade, se é para ficar entre as figuras de linguagem, a afirmação soa quase um eufemismo, já que essa marca já transborda no longa-metragem “O Som ao Redor” e em curtas como “Eletrodoméstica” e “Recife Frio”, todos do pernambucano Kleber Mendonça Filho. “Aquarius”, porém, é mais do que uma crítica consegue falar. É o triunfo do conjunto de fatores em uma obra lotada de sabores. Uma prova de que uma técnica apurada pode, e deve, servir a ideais afiados.

Antes de sociopolítica, antes de discurso teórico, “Aquarius” é vigor puro com nome e sobrenome. É até difícil delimitar o limite entre a força da personagem Clara e o qualidade cênica de Sonia Braga. A primeira aparição da atriz não é só um grande momento do filme – é um dos maiores acontecimentos do cinema nacional. Clara é introduzida mais jovem, interpretada por Barbara Colen, na Recife dos anos 1980. Riso fácil, cabelos curtos de quem recente lutara contra um câncer. O túnel do tempo traz à praia de Boa Viagem de hoje e o coque nas madeixas longíssimas se impõe. Aquela é uma sobrevivente que cresceu tanto quanto os cabelos.

O roteiro, também de Kleber Mendonça Filho, é inteligente desde essa elipse inicial. Ali, nos anos 1980, o diretor introduz a memória afetiva. O valor da história, que se sobrepõe ao mercantil. A Clara de 30 e tantos, espelhada na figura-guia de tia Lúcia (Thaia Perez), um espelho de quem a sobrinha viria a ser. Os conflitos começam com a imposição do famoso “progresso”, aquela palavra pomposa para se falar de especulação imobiliária. Única moradora do edifício Aquarius, ela é assediada pelos donos de uma empresa de engenharia que deseja fazer seu novíssimo empreendimento onde “era” a casa de Clara (e de Lúcia antes dela).

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Clara é alguém que ousa dizer não. Aliás, quem não se intimida de gritar. Afinal, assim como no filme anterior de Mendonça Filho, o som é figura essencial para a trama. Se em “O Som ao Redor” os barulhos da vizinhança entremeavam uma atmosfera de terror, em “Aquarius” a música se mostra uma resposta à opressão. A cena final, um espelho do longa anterior, retorna com barulhos intermitentes expondo uma quebra de status quo. É o grito de quem decidiu lutar até o fim por seus princípios.

A personagem, bem resolvida consigo intelectual, social e até sexualmente, é aquele contraponto que falta na nossa sociedade cada vez mais conservadora. É aquela nossa amiga que ousa responder quando diante de uma opressão machista num ônibus. Aquele manifestante que enfrenta o poder ocupando um local público em vias de uma “modificação rumo ao progresso”.

Tudo isso, porém, não significa que Clara não tenha seus dilemas. A questão é que mesmo dentro da contradição pequeno-burguesa – que, por vezes, esquece o nome de uma empregada doméstica que trabalhara na casa de amigos décadas antes –, a personagem impõe o que acredita à sua memória. É aí que o afeto vence o mercado. Que o povo escala o monstrengo do capitalismo.

Cotação: nota 7/8

André Bloc (andrebloc@opovo.com.br)


 

Originalmente publicada no Caderno Vida&Arte, do jornal O POVO.


Ficha técnica:

Aquarius (2016, BRA). Drama. 142 minutos. 16 anos. De Kleber Mendonça Filho. Com Sonia Braga, Irandhir Santos e Maeve Jinkins.

Filme em cartaz em Fortaleza no Cinema do Dragão – Fundação Joaquim Nabuco, Cineteatro São Luiz, UCI Kinoplex Iguatemi e Cinépolis RioMar.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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