Comunicação, humanidade, extraterrestres, armas nucleares. Há décadas a ficção científica explora esse espectro, fruto do nosso fascínio com um universo em constante expansão. Nesse ínterim, já surgiram o clássico “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” (1977), de Steven Spielberg, com abordagem mais direta do tema, ou até a obra-prima “Contato” (1997), de Robert Zemeckis, que explora o conceito de multiverso. Com a robusta companhia de Spielberg e Zemeckis, Denis Villeneuve se propõe a um risco bem recompensado em seu “A Chegada”.
A obra abre com uma série de memórias dolorosas da linguista Louise Banks com sua filha, Hannah. Assim, de supetão, o encadeamento do passado tem pouca força, mas, com o desenrolar do roteiro, sua função clareia. Professora universitária, Banks é convocada pelo exército norte-americano a tentar estabelecer um diálogo com seres extraterrestes que pousaram 12 monólitos em diferentes (e estranhos) pontos do globo. Mas mais do que um filme sobre essa possibilidade de conversa, “A Chegada” é sobre a constituição de um pensamento.
O principal mérito do longa, a primeira ficção científica de Villeneuve (salvo se você contar a seção final de “O Homem Duplicado”/2013), é a forma com que ele concatena as informações. Se por vezes os diálogos entre cientistas soam artificiais, eles ao mesmo tempo ajudam a deixar a trama mais clara de forma orgânica. O filme é, de várias formas, sobre diálogo. A informação mais importante para o ápice do filme, por exemplo, é explicada no segundo ato, quando Louise e o físico Ian Donnelly (Jeremy Renner) discutem a hipótese de Sapir–Whorf (ou a relatividade linguística), segundo a qual a estrutura de uma língua falada influencia diretamente na cognição e na visão de mundo de uma pessoa.
A partir do momento em que esse paradigma-conceito é instituído, Villeneuve tem a chance de explorar a comunicação visual entre os humanos e os heptápodes (os tais ETs). De forma didática, o filme também explica conceitos mais simples como o de palíndromo (uma palavra que pode ser lida em ambos os sentidos) e jogo de soma nula (em que a vitória de um jogador não significa a derrota de outro). O didatismo, aliás, apesar de eficiente é meio óbvio, ao sublinhar parte das ações. Talvez seja sinal dos tempos, já que “Contato” é mais complexo e menos confessional. Quando muito mastigado, soa que o filme está duvidando da intelectualidade do público. A atuação quase sem fôlego de Amy Adams, no entanto, ajuda a impor profundidade, mesmo quando o diálogo surge do nada.
Para além disso, no entanto, “A Chegada” é uma lufada de ar em um gênero cada vez mais impregnado pela ação desenfreada. Se até a clássica série “Jornada nas Estrelas” ganhou roupagem de fantasia, seria fácil Villeneuve apostar mais nos militares do que na linguista e no físico. Mas se a ficção científica é novidade, o centro duro da trama é o mais puro suspense, especialidade do canadense. A solução é classuda, imponente e ainda mostra um lado mais delicado de Villeneuve, ausente no brutal “Os Suspeitos” (2013). Aliás, com esse filme, somados a “Incêndios” (2010) e o já citado “O Homem Duplicado”, o diretor se estabelece cada vez mais como um artífice do mistério bem construído. Vale também dividir o mérito do roteiro de Eric Heisserer, baseado na história de Ted Chiang.
Por fim, “A Chegada” é um filme que, há 20 anos, poderia soar mais do mesmo. Hoje, no entanto, o contexto social, que vai da união a tensão a cada momento, é uma boa resposta para uma realidade crescentemente conservadora. Afinal, quando a possibilidade de uma guerra nuclear contra seres super-avançados surge, é inevitável não se pensar em Donald Trump apertando o botão vermelho. Em suma, a obra pode não ser uma obra-prima como “Contato” ou “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”, mas, felizmente, Villeneuve consegue conquistar o objetivo de uma ficção científica: pensar o futuro para discutir o presente.
(andrebloc@opovo.com.br)
Cotação: nota 6/8.
Ficha Técnica
A Chegada (EUA, 2016), de Denis Villeneuve. Ficção Científica/Suspense. 106 minutos. 10 anos.
Tudo bem…só não concordo com a afirmação de que “Contato…seja uma obra prima”, não o filme…
O livro sim, mas o filme muda a estoria, o final, deixando a trama fraca e “normal”…
Obrigado pelo comentário, Antero.
Discordância é parte do ofício da crítica. Eu amo o filme. Acho uma das obras mais inventivas dos últimos 30 anos. Mas é sempre complicado transformar a densidade literária em uma síntese para o cinema. Ainda mais em um romance do Carl Sagan!
Concordo com você! Acho que é um dos melhores filmes que vi!!! Os filmes de Amy Adams são cheios do seu estilo, e logo se pode identificar quem esta responsável pela produção. Quando vi A Chegada automaticamente vi os detalhes que o caracterizaram realmente é impressionante o trabalho de produção. Eu adorei isso filme!!