Júlio Machado consegue impor os dilemas de forma surpreendente

Poucas figuras históricas representam tão claramente as idiossincrasias do Brasil quanto Joaquim José da Silva Xavier. Hoje um mártir da Inconfidência Mineira, ele foi vítima única de uma revolução frustrada nas Minas Gerais. “Por ser o mais pobre ou por ser o mais exaltado”, dizem. Entre a realidade que moldou a história e traços ficcionais que explicam uma nação, “Joaquim”, do pernambucano Marcelo Gomes, se debruça sobre o “herói” que explica o Brasil.

Mais do que estabelecer a tensão entre o domínio português e a população de Minas Gerais no século XVIII, Marcelo Gomes se debruça num assunto tão antigo quanto contemporâneo: a corrupção. O Joaquim (Júlio Machado) da obra é um sujeito ambicioso, que galga um cargo mais alto do que o de simples alferes na tropa da Capitania de Minas Gerais. Encarregado de evitar o contrabando e coletar a “derrama”, o imposto sobre minérios que reservava 1/5 do que era colhido para a corte portuguesa, ele tenta subir na vida com trabalho. Cansado e revoltado com a injustiça da própria carreira, ele ignora contradições ainda maiores do amigo Januário (Rômulo Braga), sem chance de ser promovido por ter a pele “mais escura” ou da escrava Preta (Isabél Zuaa), a quem jura amor, mas hesita em ajudar.

O cenário de Diamantina (MG) é um ótimo contraponto à feiura do design de produção

De cara, Marcelo Gomes deixa claras as suas metáforas, tanto visuais como temáticas. A primeira sequência, marcante, traz a cabeça decepada de Tiradentes, se decompondo na chuva enquanto a narração póstuma em off sublinha o fato de que foi ele o único inconfidente morto. Essa linha vai se desenrolando com calma, de forma ponderada até um terceiro ato já conhecido nas aulas de história de todo o Brasil. Sem medo de assumir um ponto de vista, ele adota até uma caricatura da burguesia brasileira para responder a ponderação inicial sobre a morte de seu protagonista. Morreu por ser o mais exaltado ou por ser o único pobre? Na linha do cinema de Kleber Mendonça Filho, Marcelo Gomes prefere deixar claro do que intuir, do que sublinhar. Aumenta o impacto imediato, mas dissipa o efeito ao restringir a noção de interpretação.

Antes disso, porém, o longa investe em interessantes metáforas sociais. Joaquim, homem branco de baixa classe, sei em expedição com um índio como guia, um português (branco) como chefe e um escravo em busca de uma nova mina para exploração. É, de certa forma, a fauna humana ancestral do Brasil, que aos poucos se tornou mais miscigenado, mas não perdeu suas distâncias e preconceitos. Existem ali emoções complexas, como os dilemas e a fúria de Joaquim, encarnado magistralmente pelo (quase) estreante Júlio Machado. A relação de Preta com Tiradentes também tem uma profundidade marcada na atuação da luso-guineense.

Tiradentes sai em expedição com um escravo negro, outro indígena, um burguês português e um mulato

De forma única e didática, “Joaquim” consegue expor e ressaltar tradições seculares do Brasil. Mostra que a corrupção não começou com a Lava-Jato, com o Mensalão ou com os Anões do Orçamento. É uma herança maldita dos povos dominadores aos dominados. Discute ainda a falta de ascensão social e intui conceitos de marxistas de luta de classes. Tudo isso com uma direção de arte de sujeira ímpar e uma direção de arte que contrasta em sua beleza estética. É, em suma, uma obra honesta com um ponto de vista claro. É uma lição de como o passado explica o presente. Podia ser menos escancarado, mas, nos tempos de hoje, subentender pode não ser o bastante.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 6/8

Ficha técnica

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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