Por mais que seja justo, é triste que a longa duração dos filmes de Lav Diaz puxem praticamente todas as discussões sobre o cinema do filipino. Mas é natural quando “A Mulher que se foi”, sua obra mais recente, se mostra um dos filmes mais curtos da carreira de Diaz, totalizando 226 minutos – lembrando que “Evolução de uma Família Filipina” (2004) tem 540 minutos. Mais do que mostrar todas as nuances de uma história, o filipino gostar de esmiuçar nuances, estender sentimentos e ampliar efeitos. O que resulta em um imenso longa baseado em um conto.

Minerva (Marjorie Lorico) e a mãe, Horacia (Charo Santos-Concio)

Tendo por base o texto “Deus Vê a Verdade, Mas Espera” (1872), do russo Liev Tolstói, “A Mulher que se Foi” é uma nova visita de Lav Diaz a uma obra de um dos grandes romancistas russos. Assim como em “Norte, O Fim da História” (2013), adaptação livre do clássico “Crime e Castigo” (1866), de Fiódor Dostoiévski, Lav Diaz traça um paralelo entre a injustiça da Rússia czarista do século XIX e as Filipinas, igualmente desiguais ainda no fim do século XX (o filme se passa em 1997).

Não por coincidência, uma e outra trama se focam no senso de justiça com as próprias mãos, nas falhas do sistema judiciário e na desigualdade social. “A Mulher Que se Foi”, no entanto, adiciona uma noção palpável de fé e de bondade humanas em uma personagem central surpreendente. Horacia Somorostro (Charo Santos-Concio) ficou 30 anos presa, acusada de um assassinato que não cometera. Após uma amiga presidiária confessar ser a autora do crime, ela tenta retomar a vida em um país completamente mudado.

Horacia planeja uma vingança

O primeiro passo é entrar em contato com os dois filhos, mas ela rapidamente descobre que o primogênito sumiu há anos. O segundo e mais importante passo é se vingar de um ex-namorado, o responsável pela prisão injusta. Horacia se muda e começa uma vida dupla nas imediações de onde morara. De dia, ela trabalha. À noite, ela é Renata, uma solícita moradora de rua que tenta observar a rotina do rico Rodrigo Trinidad (Michael De Mesa), o tal ex-namorado.

Um ponto central, diferenciador do cinema de Lav Diaz, é a forma como ele constrói as relações dos personagens. Estendendo os sentimentos, a empatia entre os moradores dessas ruas sujas, ele transforma uma trama de ódio em um ato de amor. Aos poucos, Horacia/Renata se foca mais em ajudar a mendiga Mameng (Jean Judith Javier), o vendedor de baluts (não pesquisem o que é um balut) Corcunda (Noni Buencamino) e, em especial, a travesti Hollanda (John Lloyd Cruz).

Corcunda (Noni Buencamino), Horacia e Hollanda (John Lloyd Cruz)

Não há questionamento sobre o caráter de Horacia. Ela opta por uma vida entre párias, dentro da injustiça da sociedade, por um objetivo. Dentro do viés religioso que se abre em “A Mulher Que se Foi”, ela surge como um anjo na vida de pessoas marginais. Mameng é essencial por ressaltar o discurso de anjos e demônios e, com seu aspecto repugnante, mostrar que Horacia é generosa de fato. Da mesma forma é Hollanda, que pode até ser tratada como homem, mas é cuidada de uma forma que nunca sentira antes.

Como de costume, Lav Diaz ancora seu roteiro em diálogos densos, cheios de significados e que apontam para múltiplas conclusões. Tudo tem seu tempo, sua dimensão e, por mais que a duração do filme seja enorme, pouco pesa. Claro, a obra é cansativa, mas não é entediante. Mas se há um problema de condução, é a perda de forma ao fim de “A Mulher Que se Foi”. Há um ápice poético no fim do terceiro ato; então, Diaz aposta em um arrastado epílogo, fechando questões e retomando outros pontos lentamente. É parte da estética aberta do filipino, claro, mas tira o impacto do ápice da trama.

Fascinante, longo, rico e com um desenrolar pouco comum, o cinema de Lav Diaz é uma perspectiva nova. É uma forma extensa de olhar algo, ainda que não vá pelo caminho óbvio da noção de tudo mostrar ou de descrever todas as sombras do roteiro. O excesso de diálogos expositivos e a dificuldade de se encerrar o filme, no entanto, tornam a experiência mais lenta do que o necessário. Nunca menos fascinante.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 5/8

Ficha técnica
A Mulher Que se Foi
(Ang babaeng humayo, FIL, 2016), de Lav Diaz. Drama. 226 minutos.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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