Quanto mais se assiste “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott, mais camadas a gente descobre. Ali, há um dilema primordial sobre a finitude, tanto a de homens quanto a de androides. Há um futuro meio cyberpunk de visual espetacular e, ao mesmo tempo, caótico. Há uma jornada de um herói relutante que se mistura com um vilão visionário. E, revendo o filme recentemente e lendo um ótimo texto de um colega (Blade Runner e a melancolia), descobri que há, acima de tudo, uma história de amor. Desse fio proposto por Scott em 1982, desalinha-se “Blade Runner 2049”, de Denis Villeneuve, uma sequência respeitosa e que consegue ampliar o já rico universo do clássico cult.

“Blade Runner” mostra uma sociedade decadente, mas grandiosa

Em tempos de discussão sobre as alegorias bíblicas de “mãe!”, controverso novo filme de Darren Aronofsky, Villeneuve revisita o mito da criação de forma bem mais pacífica. No centro da trama, o “androide-caçador-de-androides” K (Ryan Gosling). Na busca por um replicante fugitivo (Dave Bautista), o detetive descobre que seu adversário resolveu fugir após presenciar um suposto milagre. Paralelamente, conhecemos a androide femme-fatale Luv (Sylvia Hoeks) e o novo fabricante de replicantes, o maquiavélico sr. Wallace (Jared Leto), que sonha em uma sociedade com milhões de androides escravizados pela humanidade. O segredo para isso? O milagre que K tenta desvendar.

O principal mérito deste novo “Blade Runner” é o respeito com as obras originais, tanto o filme de Ridley Scott, quanto o livro “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas”, de Philip K. Dick. Trazendo uma protagonista mais sintética, referências constantes aos implantes de memória e uma série de detalhes sobre animais reais e eletrônicos, Villeneuve faz jus ao romance. Ao estreitar ainda mais o limite entre o que é humano e o que é máquina, o realizador estende o escopo das obras. Soma-se a isso uma atmosfera neo-noir, com toques de referências japonesas e temos um equilíbrio entre o lido e o visto. E, além de tudo, “Blade Runner 2049” é novo.

Joi (Ana de Armas) e K (Ryan Gosling): um casal romântico fora do padrão

Do elenco original, só temos Rick Deckard (Harrison Ford) e Gaff (Edward James Olmos), em um papel minúsculo. Por mais que o tempo de tela seja limitado, o protagonista do filme original é, em vários sentidos, o dono do filme. Existe ali uma curva dramática bem mais acentuada do que sua história de amor com Rachael (Sean Young) e a dinâmica com o robótico K só amplia os dilemas sobre se Deckard é humano ou replicante. Em um pequeno pacote, o veterano ator consegue concentrar um drama de quase 30 anos do solitário personagem, que vive sozinho desde o fim do “prazo de validade” de sua amante fembot. Ford encabeça uma lista de atuações carregadas de nuances, junto aos coadjuvantes Dave Bautista, Sylvia Hoeks e Carla Juri, além da eficiência de Ana de Armas, Robin Wright e até Jared Leto.

Para além do visual fantástico recriado pelo design de produção de Dennis Gassner, que mostra a beleza do sujo e da desolação, “Blade Runner 2049” é especialmente bonito por tratar o amor como semente da humanidade. Villeneuve contrapõe a frieza do sr. Wallace, um humano com modificações eletrônicas, com a obstinação de K. Enquanto o antagonista cria e descarta, o androide oferece maior liberdade à sua esposa-holograma, Joi (Ana de Armas). Assim como em 1982, este não é um filme de virtuosismo na ação, por mais que a robustez dos efeitos visuais de hoje permitam ir muito mais. O foco é mais filosófico, naquele dilema primordial sobre o que nos faz humanos.

De volta como Rick Deckard, Harrison Ford tem a melhor atuação da carreira

E, de forma gradual e lenta (são 163 minutos de filme!), K vai preenchendo todas as caixas de resposta sobre o que é ser humano. Ele ama? Ama. Ele lembra? Lembra. Ele sofre? Sofre. Ele sonha, deseja? Sim, tanto com ovelhas reais quanto com ovelhas elétricas. Ele é capaz de se sacrificar por um bem maior? Bom, essa resposta não vou ser eu a dar. Tal qual Ridley Scott, Denis Villeneuve aposta em replicantes demasiado humanos e em homens de-humanizados. E para isso, aposta em alegorias bíblicas, em diálogos clichê e em vários mecanismos que tornam “Blade Runner 2049” bem mais acessível que “Blade Runner”. A proposta se estende, mas um pouco da força da mensagem se dilui ligeiramente. Há, no entanto, um universo muito mais expandido e um roteiro que consegue reservar alguns surpresas, ainda que pautado na repetição.

É difícil impor uma perspectiva histórica para a sequência de um fracasso-transformado-em-clássico. O que digo hoje é que “Blade Runner 2049” é mais um desdobramento natural do que uma evolução ou um pastiche. É uma obra que se sustenta por si só, também oxigenando o antecessor, enquanto cresce ao se alimentar do longa de 1982.

andrebloc@opovo.com.br

O filme entra em cartaz nos cinemas na quinta-feira, dia 5 de outubro.

Cotação: nota 7/8

Ficha técnica
Blade Runner 2049
(EUA/ING/CAN, 2017), de Denis Villeneuve. Ficção Científica. 163 minutos. Com Ryan Gosling, Ana de Armas e Harrison Ford.

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André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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