Detroit, 1967. Após anos de tratamentos e oportunidades desiguais, a população negra de uma das maiores cidades dos Estados Unidos vai às ruas em protestos que descambam em destruição, saques e violência. Dois anos após a população afro-americana ganhar direito a voto, a desigualdade ainda galopava e os guetos cresciam em grandes cidades. “Detroit em Rebelião”, de Kathryn Bigelow, conta diferentes histórias que se juntam e uma das mais polarizadas ilustrações do racismo que o cinema já fez.

Krauss (Will Poulter) e Greene (Anthony Mackie): a tensão racial corta do começo ao fim

De um lado, temos Fred (Jacob Latimore) e Larry (Algee Smith), dois homens negros que buscam na música uma oportunidade de ascensão social. Paralelamente, acompanhamos os policiais Krauss (Will Poulter), Flynn (Ben O’Toole) e Demens (Jack Reynor), que tentam, em vão, conter uma população que não entendem. No meio de campo, o segurança Dismukes (John Boyega, em atuação espetacular) tenta negociar tanto com forças policiais, quanto com jovens revoltados.

Baseado em fatos reais, “Detroit em Rebelião” remonta, a partir de relatos, o que acontece após o encontro de três policiais brancos armados e um grupo de sete homens negros desarmados. Antes disso, porém, Bigelow demarca a hierarquia social conquistada por uma arma em uma cena tensa e ilustrativa em que um homem negro, Carl (Jason Mitchell) usa um revólver para interpretar uma abordagem policial para um público de dois desconhecidos e duas moças brancas. Por mais que soe banal após as diversas sequências de violência e tortura, a cena estabelece a atmosfera de violência e tensão social que dominavam Detroit – e que ainda é realidade diariamente nos EUA e no Brasil.

Dismukes (John Boyega) sempre aparece distante, quase saindo de cena

Mais uma vez em parceria com o roteirista Mark Boal, a diretora de “Guerra ao Terror” (2008) e “A Hora Mais Escura” (2012) assume um papel de mediadora, representada pelo personagem de John Boyega. Tratado como vendido, como escravo, pelos negros, e como serviçal pelos caucasianos, o personagem tenta mudar um cenário de barbárie negociando. Ele tenta ser a voz da razão e, diante de um quadro irreversível, tenta impedir que os policiais matem os homens inocentes simplesmente por estar ali. O que, claro, é bem pouco. O que mais dói em “Detroit em Rebelião” é ver personagens de caráter sem se impor. Eles assistem, julgar, questionando, mas não levantam um braço para impedir. A atmosfera de medo é tanta que o filme chega a flertar com a trama de horror. Mas é obra de crime, de tensão racial e dos diferentes pesos da criminalidade negra e policial branca.

Nessa medida, fica claro que o filme de Bigelow não é sobre o papel dos negros na tensão racial. Eles são vítimas históricas e tem uma retaliação devida, por mais que soe desproporcional. “Detroit em Rebelião” é sobre o papel histórico do racismo na construção da hierarquia social e sobre o quanto, mesmo hoje, nós, brancos, pouco fazemos para mudar a situação. É por isso que a diretora faz do filme uma experiência tão revoltante. Os sentimentos ali não são pacíficos e o objetivo é despertar uma raiva. Ou melhor, escancarar o quanto essa sensação pauta a relação entre brancos e negros em países que cresceram nos ombros de escravos, como Estados Unidos e Brasil.

Fred (Jacob Latimore) e Larry (Algee Smith)

Em 2008, em “Guerra ao Terror”, Bigelow dá o contexto internacional da era George W. Bush e sua cruzada no Oriente Médio em busca de armas de destruição em massa (ou petróleo, se formos ser mais honestos). Já 2012, com o elogiável e criticável “A Hora Mais Escura”, Barack Obama entra em cena e a parte ética da tortura fica mais nebulosa. Em certa medida, “Detroit em Rebelião” é uma extensão e uma resposta ao filme anterior de Kathryn Bigelow/Mark Boal. Aqui, a crítica à tortura é clara e indissociável da trama. Ao mesmo tempo, brancos racistas e movimentos anti-fascistas parece um contexto tão de 1967 quanto dos Estados Unidos de Donald Trump. O fato de “Detroit em Rebelião” assumir o ponto de vista das vítimas podia ser criticável, mas ao disseminar o discurso, Bigelow faz seu filme mais brutal dessa bem norte-americana trilogia de dor e pesar.

Outra dor que “Detroit em Rebelião” desperta é a previsibilidade. Intimamente, nós sabemos desde o começo quem morre e quem vive, quem atira e quem é alvejado. A gente sabe porque a gente já viu, a gente sempre vê, lê nos jornais. Podem ser três, quatro, oito jovens negros na Detroit de 1967. Podem ser uma centena de presidiários desarmados em um presídios de São Paulo em 1992. Podem ser até jovens negros, sem antecedentes criminais, que calharam de estar nas ruas da Grande Messejana, em Fortaleza, numa noite de novembro de 2015. “Detroit em Rebelião” reverbera não por ser baseado em uma história real, mas por retratar uma infinitude de outras tramas verídicas.

(andrebloc@opovo.com.br)

Cotação: nota 8/8

O filme está em cartaz nos cinemas nacionais

Ficha Técnica
Detroit em Rebelião
(Detroit, EUA, 2017), de Kathryn Bigelow. Drama/Crime. 18 anos. 143 minutos. Com John Boyega, Jacob Latimore e Will Poulter.

About the Author

André Bloc

Redator de Primeira Página do O POVO, repórter do Vida&Arte por seis anos, membro da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine).

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