Por Pedro Rogério (Músico, pesquisador e professor da Universidade Federal do Ceará)

Palco do TJA durante a realização do Massafeira (1979)

A música cearense é múltipla e generosa, afinal estamos nos referindo a uma música brasileira. E assim como em qualquer outra região deste país de variados climas e situações sociais, nós temos características regionais marcantes; no Ceará localizamos referências musicais que remetem ao sertão, à cultura praieira e à paisagem urbana. Neste cenário encontramos o canto dos violeiros, dos reisados, dos emboladores, os corais das igrejas, as bandas de música dos municípios – que funcionam como escolas de prática instrumental -, a música popular, erudita, instrumental, cantada, simples e sofisticada. Essas classificações (artificiais) não são fixas, taxativas, nem exaustivas e por vezes se misturam nas obras de nossos compositores; aqui apenas lembramos nossa diversidade. Vamos, então, viajar um pouco por essa riqueza musical.

A presença do gado no sertão traz com ele os aboios, este encantamento que é ver o homem manter uma ligação tão direta com o rebanho através do canto. Uma mistura de lamento, força e encanto, o que traduz a vida do vaqueiro em meio a dureza de sua lida, sua resistência e a mágica de laçar o boi com a voz.

Um dos nomes de maior referência da música cearense é Alberto Nepomuceno (1864-1920), grande compositor nacionalista, abolicionista que entre outros feitos trouxe a língua portuguesa para a música dita erudita, desafiou a aristocracia musical ao promover a realização do concerto de violão do compositor Catulo da Paixão Cearense no Instituto Nacional de Música e foi um dos primeiros incentivadores do então estreante Heitor Villa-Lobos.

Já nas décadas de 1920, 30 e 40 encontramos uma forte presença das radiadoras nas cidades, que eram verdadeiras professoras de música para toda a população. Em Quixeramobim, por exemplo, existia “A Voz de Cristal”, que era um serviço de alto-falantes que formou em grande medida o gosto musical de um dos letristas da canção cearense mais celebrado: Fausto Nilo.

Os Vocalistas Tropicais

Essas radiadoras eram presenças encantadoramente marcantes; mas, de onde vinham os discos que ali tocavam? Vinham das fábricas de discos que tinham como sede a então Capital Federal – o Rio de Janeiro – ou o centro comercial brasileiro – São Paulo. Logo, os primeiros artistas que se projetaram nacionalmente embarcaram nesta viagem em busca de fazer circular mais amplamente sua arte. Assim, Humberto Teixeira empreende esforços no Rio de Janeiro que, em parceria com Luiz Gonzaga, opera um dos fenômenos mais impressionantes da música brasileira em termos de difusão da cultura nordestina. Este é o período em que encontramos dois grupos vocais que também influenciaram a música brasileira, trata-se de Quatro Azes e um Coringa e Os Vocalistas  Tropicais.

Com a chegada do rádio nas residências, que era um móvel de distinção nas salas das residências, as famílias foram imersas em um mundo musical através da voz de grandes cantores como Vicente Celestino, Chico Alves, Silvio Caldas sendo este período conhecido como a “época de ouro do rádio” influenciando fortemente a música cearense. Importante se faz registrar uma das emissoras mais importantes daquele momento que era a Ceará Rádio Clube.

As referências vão se multiplicando com a Bossa Nova, The Beatles, Rolling Stones, os movimentos contra a guerra do Vietnã, a invenção do anticoncepcional que revoluciona as relações entre homem e mulher levando à emancipação feminina e na década de sessenta com o golpe militar a classe intelectual e artística, justamente por ter uma maior capacidade crítica se opõe àquele estado de coisas. E é a Universidade o espaço de relativa autonomia onde exercitam sua liberdade de expressão. Neste contexto surge a Tropicália na Bahia, o Clube da Esquina em Minas Gerais e, não por acaso, o Pessoal do Ceará revelando nomes como Belchior, Ednardo, Fagner, Fausto Nilo, Rodger, Petrúcio Maia, Téti, Ricardo Bezerra entre muitos outros. Estes artistas são depositários da ideia antropofágica da Semana de Arte Moderna de 1922. Um dos intelectuais que era considerado o guru desta geração – Augusto Pontes – assim escreveu na capa do disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem que ficou mais conhecido pelo seu subtítulo “Pessoal do Ceará”: “Enfim comemos muito a cultura nacional e sempre querendo que a ‘comida’ fosse melhor. Continuamos nesse banquete, mas, começamos a botar os pratos na mesa, para distribuir o nosso angu …”.

Chegando à década de 1980 encontramos dois marcadores históricos que são os discos Soro produzido por Raimundo Fagner que reuniu artistas do quilate de Cirino, Nonato Luiz, Ferreira Gullar, Abel Silva, Belchior, Geraldo Azevedo, Fausto Nilo, Nubia Lafayette; e seu irmão Massafeira que promoveu o encontro entre a geração Pessoal do Ceará e os novos artistas ávidos por fazer circular suas músicas, como Ângela Linhares, Régis Soares, Rogério Soares, Stone, Vicente Lopes, Lúcio Ricardo, Mona Gadelha, Francisco Casaverde, Gracco, Caio Silvio,  Stélio Valle, Chico Pio, Wagner Costa, Alano de Freitas, Pachelli Jamacarú, entre outros. Olhando para essa produção podemos perceber a multiplicidade e poder inventivo de nossos compositores, músicos e intérpretes. Estamos aqui em um momento de abertura política e a força da liberdade no comportamento dos artistas começa a encontrar um maior espaço.

Décadas de 1990 e século XX continuamos com uma ótima produção que encara os desafios das novas configurações históricas, com suas facilidades tecnológicas e também novas formas de produção e circulação. Encontramos grandes artistas como Kátia Freitas, David Duarte, Marcus Caffé, Eugênio Leandro, Amaro Pena, Dilson Pinheiro, Ana Fonteles, Parahyba, Serrão entre muito e muitos outros que enriquecem nossa música. Cidadão Instigado ganhou o mundo faz muito tempo com os músicos Rian Batista, Dustan Galas, Fernando Catatau, Regis Damasceno, Boquinha. E agora, o Bora Ceará Autoral Criativo unindo a produção de Alan Mendonça, Davi Silvino, Edinho Villas Boas, Marco Leonel Fukuda, Carlos Hardy, Joyce Custódio, Wilton Matos, Lenine Rodrigues e saibam que tem muito mais nessa generosidade musical cearense.

Continuamos nesta boa peleja de nos reconhecermos do tamanho que merecemos em quantidade, qualidade e variedade polifônica, transmitindo ao Brasil e ao Mundo as belas poesias, melodias, harmonias e riqueza rítmica do Ceará.  Assim podemos concluir nossa viagem musical afirmando que o Ceará é musical, do xote ao rock, do xaxado ao tecno, do baião às guarânias, do forró ao bolero, do maracatu ao carimbó e quem quiser pode depositar mais riquezas neste matulão brasileiro.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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