A história que circunda a Pedra do Ingá é cheia de mistérios. Localizada a 109 km de João Pessoa, na Paraíba, o que se tem de certo é que ela foi descoberta por acaso, em 1598, enquanto os soldados do capitão-mor Feliciano Coelho de Carvalho caçavam índios. Toda entalhada em desenhos que sugerem bichos, frutas e gente, ela hoje é hoje um importante achado arqueológico, que provoca discussões sobre quem teria deixado tais registros. Para alguns, as inscrições têm origem fenícia. Para outros, são a prova viva da presença de alienígenas na Terra.

Para os músicos Zé Ramalho e Lula Côrtes, eram a inspiração que faltava para criarem uma arrojada obra musical. O disco Paêbirú – Caminho da montanha do sol percorre, ainda hoje, um dos caminhos mais erráticos e curiosos de que se tem notícia no Brasil. Essa história começa no início dos anos 1970, quando José Ramalho Neto, guitarrista desconhecido tarimbado em bailes regados a Jovem Guarda, conhece o guru da psicodelia paraibana da época, o artista plástico e compositor experimental Lula Côrtes. Eles foram apresentados pelo artista plástico Raul Córdula, que também propôs uma visita ao famoso sítio localizado no município de Ingá do Bacamarte. Boquiabertos com aquele mistério, ali mesmo, eles pensaram na  gravação de um disco inspirado na mítica Pedra do Ingá. Acampados sob as estrelas sertanejas, os dois malucos caíram de boca numa viagem operística sem precedentes. “Construiu sem temer a Lúcifer, no oceano banhou-se na maré. E nas montanhas deflorou a madrugada. Nas paredes da pedra encantada, os segredos talhados por Sumé”, cantam em Nas Paredes da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé, funk rock pontuado por timbres de teclado.

Trancados no estúdio Rozemblit, localizado sobre as águas do Capibaribe, eles mergulharam numa sopa psicodélica de rock, jazz, fusion, sons de água, violões ensandecidos e ruídos estranhos. Paêbirú conta cerca de 55 minutos, divididos em quatro partes, cada uma inspirada em um elemento da natureza. Terra abre o LP duplo com pancadas percussivas e a voz rascante de Zé Ramalho guiando a loucura, enquanto Ar, no lado B, dá destaque para violas, harpas, sons de pássaro e suspiros. No lado A do segundo disco, Fogo vem com os sons pesados de guitarra, baixo, bateria e um teclado cuspindo piração. Depois, a Água vem e vira o jogo, acrescentando pitadas de forró. Os imensos percursos sonoros do álbum desenham paisagens coloridas de uma caatinga roqueira, com estradas sinuosas que parecem infinitas, sem um destino certo.

Participando de toda essa maluquice, que intercala longos solos instrumentais com trechos letrados em forma de louvação, estavam nomes como Geraldo Azevedo, Robertinho do Recife e Alceu Valença. Se Paêbiru já foi feito como um rasgo de inspiração sem pretensões comerciais, tudo piorou quando uma enchente histórica invadiu o estúdio levando embora mais de mil cópias do disco, além das masters. Segundo a lenda, sobraram apenas 300 cópias, que acabaram se espalhando pelo mundo e passaram a ser disputadas por colecionadores, que chegam a desembolsar quantias enormes por uma cópia original. No assunto raridade, uma cópia original em LP de Paêbirú, que marca a estreia de Zé Ramalho em disco, acabou desbancando Roberto Carlos, cuja apócrifa estreia com Louco por você, segura um segundo lugar na lista dos mais procurados.

Lula Côrtes morreu em 2011 e se recusa a responder mais perguntas sobre o disco, deixando muitas histórias guardadas no tempo. Para o paraibano, nada mais há de ser dito sobre seu mítico álbum de estreia. Lula não se negava a falar do disco e contribuiu com o que pôde para um documentário sobre sua gravação mais lembrada – chegou inclusive a voltar a Ingá, mas faleceu antes de ver seu filme pronto. À revelia dos autores, a obra segue compartilhada à exaustão pela internet. Paêbirú é um registro único de dois artistas no auge da inspiração, criando um bicho que não se sabia, exatamente, que nome levaria. Mas que, certamente, seria difícil de passar despercebido.

 

Faixas de Paêbiru (1975):

1. Trilha de Sumé (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
2. Culto à Terra (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
3. Bailado das Muscarias (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
4. Harpa dos Ares (Geraldo Azevedo/Lula Côrtes/Zé Ramalho)
5. Não Existe Molhado Igual ao Pranto (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
6. Omm (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
7. Raga dos Raios (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
8. Nas Paredes da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé (Marcelo/Lula Côrtes/Zé Ramalho)
9. Maracás de Fogo (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
10. Louvação à Iemanjá (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
11. Regato da montanha (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
12. Beira mar (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
13. Pedra Tempo Animal (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)
14. Sumé (Zé Ramalho/ Lula Côrtes)

>> Pedra Tempo Animal (Zé Ramalho/ Lula Côrtes) por Carlus Campos

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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